quinta-feira, setembro 30, 2004

DUVIDAR OU ACREDITAR

Depois de dias a matutar no assunto, tomo uma dolorosa decisão. E termino o namoro com a Ruiva... Sinto-me desesperadamente triste porque gosto dela (por muito paradoxal que seja, nesse ponto nada mudou) e tenho receio de estar a ser demasiado drástico. Porém, quanto mais penso no assunto, mais terrivelmente inevitável me parece a conclusão.

A Ruiva esteve em Lisboa toda a semana passada. Hospedada na minha própria casa. Convidada pela minha própria mãe (que, curiosamente, já a adoptara sem reservas!). E, se bem que, por um lado, tenha sido maravilhoso tê-la comigo durante esses dias, nem tudo foi um mar-de-rosas...

Depois de uma noite em que saí com ela e o seu grupo de amigos mais próximos (e os vi a funcionar juntos), apercebi-me da aterradora verdade: a Ruiva e eu somos diferentes. Pertencemos a mundos diferentes. Este facto, por si só, não compromete necessariamente a nossa relação, pois a verdade é que, apesar das diferenças, também partilhamos muitos princípios, pontos de vista e interesses em comum. E eu acredito que duas pessoas, por muito diferentes que sejam, podem ter uma relação feliz e saudável se, tendo consciência daquilo que as diferencia (e separa), apostarem naquilo que têm em comum – e que as une. Basta acreditar e assumir a relação. Contudo, e infelizmente, não é esse o caso da Ruiva, pois, até ao momento, ela tem evitado assumir a nossa relação. Enquanto eu tenho apregoado aos quatro ventos o meu amor pela bela Ruiva de olhar azul, ela, pelo seu lado, tem mantido a nossa relação em segredo, só a revelando a um ou outro amigo mais íntimo. Porque ela tem dúvidas. E espera que, com o tempo, elas se dissipem... “para poder anunciar ao mundo com toda a certeza que és tu o homem que eu amo!”

Ora, eu não ponho em causa as suas dúvidas. Pelo contrário, compreendo-as, porque eu próprio as tenho. Afinal, a nossa relação é deveras complicada, devido à distância. Porém, penso que se ela já não acredita na relação agora, ao início – quando habitualmente todas as relações são perfeitas e cor-de-rosa –, dificilmente o irá fazer mais tarde! Ao não assumir a relação, devido às dúvidas, ela está automaticamente a concentrar a sua atenção nessas incertezas – e, consequentemente, em tudo o que nos separa. Desse modo, como espera ela que as dúvidas se dissipem?... Not gonna happen. Pelo contrário: concentrada como está nas dúvidas, é inevitável acabar sufocada por elas.

Assim sendo, que posso eu fazer? Preso nesta relação para a qual não vejo futuro, condenada a soçobrar sob o peso de todas as nossas diferenças?... Devo obrigar a Ruiva a assumir a relação? Fora de questão. Mesmo que ela fosse pessoa influenciável (que não é!) e se deixasse convencer pela minha argumentação, a relação tornar-se-ia numa bomba-relógio à espera de rebentar... Na minha cara. Uma pessoa só acredita verdadeiramente em algo convencendo-se de dentro para fora. Nunca de fora para dentro. Por outras palavras, é imprescindível sentir. Se a Ruiva não sente dentro de si a vontade de acreditar na nossa relação, toda e qualquer persuasão da minha parte é inútil. Estou de mãos e pés atados.

Subitamente, a realidade acerta-me entre os olhos com a potência de um aríete: o meu belo namoro é um tremendo engano. Na verdade, não existe. Só existe na minha cabeça. Não duvido que a Ruiva goste de mim, mas, para uma relação ser bem sucedida, isso não basta. E, com esta dolorosa tomada de consciência, torna-se impossível para mim continuar a acreditar nesta relação.

Por muito que me custe, não vale a pena adiar o inevitável. Não vou ficar a ver a relação degradar-se inexoravelmente, agarrado a esperanças vãs. Não vou viver uma relação à espera que a outra pessoa tome uma decisão. Uma decisão que sei que nunca se concretizará. Apenas eu sou responsável pela minha felicidade. E tenho nas minhas mãos o poder de a escolher. Cabe-me a mim fazê-lo... Ou não. Ainda que isso me obrigue a tomar decisões dolorosas.

CYBORG UPGRADE

De manhã, bem cedo, estou de volta ao Hospital Egas Moniz, para uma consulta de Urologia. Acompanham-me o PP e o Ballistic. O PP tem sido o meu companheiro inseparável nestas andanças de consulta em consulta, de hospital para hospital. É ele quem me tem dado boleia (de carro!) para todo o lado (sempre muito devagarinho e cheio de cuidados para comigo, que eu não posso usar cinto de segurança, por causa da clavícula fracturada) e até mesmo aviado as receitas que os médicos me passam. Sei que ele se sente responsável por mim, uma vez que era ele quem ia a guiar a mota aquando do acidente que causou tudo isto, mas sei também que a maior parte de toda esta solicitude é apenas porque ele é um dos meus melhores amigos e se preocupa comigo. É um amigão! Quanto ao Ballistic, com certeza não deve ter nada de melhor p’a fazer na vida, caso contrário não teria mostrado qualquer interesse em perder uma manhã no hospital!... Enfim, também não é por acaso que este gajo é um dos meus melhores amigos.

Após uma eternidade à espera na Sala, ou melhor, no Corredor de Espera, ouço chamar o meu nome. Enquanto me dirijo ao Gabinete 1, conforme indicado, não consigo evitar alguma ansiedade. É que, contrariando todas as minhas expectativas de uma rápida recuperação, a fonte secou. Por outras palavras, há mais de uma semana que deixei de mijar. De todo. O que quer que seja que está a obstruir a uretra deve ter-se deslocado e entupiu-a completamente. E agora não sai nem uma gota para amostra! Além disso, e para acrescentar algum colorido à situação, descobri que o cateter urinário desliza no orifício – sempre que me sento na retrete e faço força para evacuar, o tubo desliza para fora, o que, apesar de ter uma certa piada, não é nada simpático, porque o raio do tubo está preso à carne com o mesmo fio que usaram para coser o buraco que me abriram na barriga. Ora, quando o tubo desliza para fora, puxa o fio... e este puxa a carne! Creio que seria desnecessário dizê-lo, mas... isso DÓI! Pergunto-me a mim mesmo, até, se não será lícito recear que o maldito tubo salte de vez do buraco e eu me veja a esguichar sangue e mijo pela barriga!

“Não é provável,” responde-me, pensativamente, o médico. Provável?! Isso não me deixa aliviado! O facto de não ser provável não significa que não possa acontecer! Pelo contrário, até indica que existe uma probabilidade, por muito pequena que seja! Impossível, sim, é que seria uma resposta satisfatória! No entanto, o médico toma uma resolução: “Vamos mudar-lhe isso.” Fico confuso. Mudar? Mudar o quê? O saco de mijo? Ele não pode estar a referir-se ao cateter... Ou pode?

Depois de outra eternidade à espera, tenho a minha resposta, ao ser chamado para a Sala de Tratamentos. Nervoso, deito-me na mesa de tratamento e exponho o baixo ventre. Depois de retirar o penso (feito por mim!) que resguarda o cateter, a enfermeira de serviço rapa-me a seco os pêlos da zona (para que o novo penso adira bem à pele) e, seguidamente, passa-me pela barriga compressas atrás de compressas embebidas em todo o tipo de soluções desinfectantes. O que são, não faço ideia. Só sei que tudo arde – tenho a barriga toda em fogo! “Você tem aí tudo o que precisa para torturar uma pessoa!” digo-lhe. Porém, pela cara, não creio que ela tenha achado grande piada à minha pobre graçola. Só espero que, por vingança, ela não me faça sofrer a sério!

Just in case, pergunto-lhe se vai doer. “Sabe que, por nossa vontade, ninguém sofria nada.” Bonito! Isto faz-me lembrar aqueles filmes de mafiosos, em que os tipos sempre mandam bocas destas antes de sacarem dos tacos de baseball... Estou feito! Subitamente, a enfermeira puxa de uma tesoura e clip, clip, clip-a-clip, lá se vão os pontos – bom, ao menos, isto resolve-me o problema do fio que puxava a carne. Depois, ela agarra o tubo com as duas mãos e puxa: zuiiipt, zuuuiiiiiiipt... POP! E, logo de seguida, plumpt, sguuuch, sguuuuuch, enfia-me um novo tubo pela barriga adentro! Durante todo o processo, a minha bexiga contrai-se e expande-se consoante a enfermeira puxa e empurra. “Woah! Woooah! Woooooah! Que sensação tão estranha!” grito eu.

Então, vejo a enfermeira pegar numa seringa enorme com, à vontade, um palmo de comprimento. “Onde é que ela vai enfiar aquilo tudo?!” pergunto-me eu. Ela fixa a ponta da seringona na extremidade do cateter recém-colocado e... dá à bomba! A minha bexiga parece que vai rebentar e sinto uma pontada aguda no local onde a uretra encontra a bexiga. Tenho as mãos crispadas e as pernas torcidas de dor. “Relaxa... Respira fundo...” penso para comigo. Parece piada (e, okay, também é), mas a verdade é que um gajo sofre mesmo menos se estiver mais relaxado. Ou, pelo menos, o tempo não custa tanto a passar. E, com efeito, pouco depois, tudo termina.

Depois de feito o penso, a enfermeira diz-me que “isto agora fica assim – não precisa de pontos.” E remata: “Esse cateter de silicone dá-lhe para três meses.” Ainda bem que já abotoei as calças, senão caía-me tudo aos pés: “Mas eu vou andar mais três meses com isto enfiado na barriga?!” pergunto, desolado. “Não, isso é o seu prazo de validade. O doutor pode bem mandá-lo tirar isso mais cedo.” Oh, que merda! E, entretanto, vou para casa tomar antibióticos e rezar para que a tubagem desentupa por si só?... Que merda!

A minha única satisfação é o médico manter-me de baixa até dia 10 de Outubro. Na verdade, e por vontade dele, o gajo mandava-me trabalhar já amanhã! Mas ele perguntou até quando queria eu ficar de baixa e eu, claro, não me fiz rogado em sacar-lhe mais uma semana de férias. Depois disso, quer queira, quer não, lá terei de voltar para o mundo real, com cateter e tudo...

Contudo, no meio destas tristes notícias, até me sinto mais alegre. A verdade é que este novo cateter é bem mais confortável que o antigo. E, caramba, ter um cateter de silicone é do caraças! E sem pontos, hã? Muito fora! Welcome to the Age of Cyberpunk! Se os meus pais me vissem agora!...

sábado, setembro 25, 2004

SABOR A PRENÚNCIO

“Quem diria
Que um dia
Voltava a ver Raquel,
Fiquei parado e pouco lhe falei

“Há quanto tempo não te via,
Julguei até já ter estancado a hemorragia
Mas, ao que vejo,
O tempo não passou

“Como era bom
Contar-lhe o que eu sentia,
Mas vejo que a conversa vai ficar para outro dia
Por ora, só me sai
Raquel”

Raquel,” Ornatos Violeta

terça-feira, setembro 21, 2004

O ELO PERDIDO E O ESTÁGIO SEGUINTE DA EVOLUÇÃO

Durante o Sábado passado, sentado ao computador, dei um jeito no ombro lesionado que me deixou a arfar de dores durante uns bons momentos. E ontem de manhã, depois do banho, ao levantar um pouco a ligadura do cruzado posterior para analisar a clavícula partida, reparei que esta estava muito mais saliente. Não facilitei: toca para o hospital. Podia nem ser nada, mas eu quero este braço recuperado a 100%, para voltar a dançar sem problemas.

No Hospital S. Francisco Xavier (o meu hospital de residência e, calha bem, o local onde me ligaram os ombros) perguntam-me há quanto tempo foi o acidente e para quando está marcada a consulta de Ortopedia. “Para daqui a um mês,” respondo. Os médicos estranham. Explico-lhes que foi a vaga que consegui arranjar no Hospital Egas Moniz, após ter recebido alta. “Não, não. Estamos a falar da consulta de acompanhamento. Para quando é que o médico que lhe fez o cruzado aqui lhe marcou nova consulta?” Uh-oh! “Não marcou,” respondo. Os dois médicos parecem siderados: “Não marcou?!” “Não. Ligaram-me e disseram-me apenas que o meu ombro ‘nunca mais me ia dar problemas.’ E depois mandaram-me à minha vida...” Dirigindo-se à enfermeira, o médico pede-lhe que averigue quem era a equipa que estava de serviço na noite em que eu fui tratado. Após uns minutos, ela regressa com a informação pretendida e o médico passa-me uma guia de consulta para o dia seguinte (ou seja, hoje) com a médica em causa, no Hospital de Sant’ Ana, na Parede.

E assim, hoje bem cedo, cá estou eu em novo hospital (e já é o quarto que visito desde o início desta rica aventura!), para a consulta de acompanhamento que me era devida e que alguém se esqueceu de me informar. Pergunto-me o que sucederia caso não tivesse acontecido ir ontem ao hospital, por descargo de consciência, e encontrado, por acaso, este elo perdido da cadeia... Lá pelo Natal ainda andaria com a mesma ligadura, a destilar um cheiro nauseabundo dos sovacos!

Se há lição que aprendi com tudo isto é que, se um gajo se quer manter informado sobre o seu próprio caso, tem de ser chato, fazer-se de parvo e perguntar tudo aos médicos. Mas TUDO, mesmo! Porque os gajos, sozinhos, não falam – e, muitas vezes, nem sequer informam um tipo do essencial! Partem do princípio que um gajo sabe tudo – ou que não é digno de saber nada – e ala para a frente! Isto chega a ser kafkiano! Agora percebo como K. se sentiu n’ “O Processo”!

Apesar de tudo, sinto-me feliz por tudo ter resultado como resultou. No Hospital de Sant’ Ana, tiro nova radiografia à clavícula (que pode ser apreciada mais abaixo – de notar como agora a fractura se vê tão bem) e falo com a médica responsável (a tal que se esqueceu da minha consulta de acompanhamento – e que até é uma rapariga bem simpática, por sinal). Após analisar a radiografia, ela diz-me que ainda não há consolidação do osso, mas que isso é normal, uma vez que só decorreram duas semanas desde o acidente. “Normalmente, a consolidação só se faz após um mês. Entretanto, vai fazer novo cruzado posterior e volta cá para a semana, para o mudar.”



Depois de duas semanas permanentemente ligado, é um tremendo alívio ver-me livre do cruzado, ainda que seja apenas por breves minutos. Até se respira melhor! “Posso pedir-lhe um favor?” pergunto eu à enfermeira, “Os meus sovacos não vêm água nem sabão há duas semanas, é possível lavá-los antes de me fazer o novo cruzado?” A médica e a enfermeira riem-se e esta última, acedendo com entusiasmo ao meu pedido, lava-me afincadamente todo o tronco!

E assim, abandono o hospital, mais limpo e também mais aprumado do que quando entrei. E, caramba!, agora é que me sinto mesmo um cyborg, com o tubo de borracha enfiado pela barriga adentro, a bexiga portátil e esta couraça à Robocop, que, de tão apertada, nem consigo baixar os braços! Onde é que já se viu um portento assim?! Tornei-me num ser tão avançado que até mijo por dois sítios diferentes! Pasmem, ó gentes, perante este prodígio da simbiose da Natureza com a tecnologia do Homem – um Jacaré com upgrade! O estágio seguinte da evolução!

(Caramba, quem me ouvir falar até pensa que isto foi o melhor que me aconteceu na vida! Quem sabe, continuando a falar desta maneira, também não me consigo convencer a mim mesmo?... Não custa tentar!)

sexta-feira, setembro 17, 2004

RECORDAÇÕES DO REGRESSADO

Acordo esta manhã depois da melhor noite de sono que tive desde o dia do acidente. Não há nada como a nossa própria caminha! Mas também é de esperar que, depois de 10 dias a dormir sempre na mesma posição, o corpo se vá habituando, que raio! Com efeito, já não tenho tantas dores nas costas durante a noite e noto que a zona do sacro desenvolveu mesmo uma certa insensibilidade ao toque! O corpo humano é uma máquina incrível!

Recebi alta ontem de manhã e, pouco depois do almoço, o meu cunhado e o PP foram buscar-me ao hotel, perdão, ao hospital. Apesar de feliz por regressar a casa, confesso que foi com alguma tristeza que abandonei o hospital... Já estava habituado àquela vidinha simples e despreocupada, à simpatia dos enfermeiros (e, sobretudo, das enfermeiras) e custou-me deixar os meus novos colegas de quarto, o Sr. António e o Sr. Zé Guerreiro, ambos a recuperar de operações cirúrgicas.

Nunca me esquecerei da contenda do clister, entre o nosso Sargento (um enfermeiro gordo que o António e eu assim apelidámos devido à sua voz retumbante) e o velho Zé Guerreiro, na noite anterior à operação deste: o velho Zé, surdo como um calhau, adormecera sem meter o clister. Ora o clister é imprescindível, para evitar inconvenientes durante a operação. O António e eu tentámos acordá-lo, mas o gajo limitou-se a ressonar mais alto (e que talento demonstrava – o Arménio e o velho Matos eram meros principiantes ao pé dele!). Resolvemos então delatá-lo a uma das enfermeiras, mas ela também não foi bem sucedida – ele virou-se simplesmente para o outro lado da cama. Mas eis que entra em cena o nosso Sargento! E, depois de um berreiro de vários minutos, o velho Zé lá entendeu que tinha que ir para a casa-de-banho enfiar aqueles tubinhos pelo cu adentro, para expurgar a tripa. “Estes dois estão bem um para o outro,” diz o António, “um é surdo como uma porta e o outro tem voz de comando – entendem-se bem!...”

Não me esquecerei também das conversas sobre sexo que o António, volta e meia, se lembrava de puxar com o velho Zé Guerreiro, dizendo-lhe que era preciso “manter sempre a força” e ilustrando o sentido da afirmação com o braço erecto e o punho fechado. O velho Zé respondia, com um sorriso desdentado, que não lhe valia de nada “a força,” pois a algália o impedia de executar (que diria o Yoda a isto, I wonder?...). “E depois, o corpo também já não dá para isso, que eu já tenho 64 anos.” O António arrepiava-se: “Ó homem, eu só tenho menos dez anos que você, mas quero fazê-lo até morrer, que isto é o maior prazer que eu tenho na vida!” E, por momentos, eu tentava imaginar aquele homenzarrão de ar bruto e queixada larga, com a sua vetusta pança, a saltar em cima da esposa, alagado em suor e com o olhar estrábico vidrado ao atingir o clímax. E não podia evitar sorrir perante a singular e disforme poesia da cena de amor protagonizada por alguém tão estranho aos cânones de beleza idolatrados pela nossa moderna e esclarecida sociedade ocidental.

O homem, porém, não suportava a solidão. “Uma pessoa, aqui, tem muito tempo para pensar... Pensa-se em demasiadas coisas,” costumava dizer-me. Eu levantava os olhos do livro que estava a ler e via perfeitamente no seu olhar a angústia que aquele homem sofria ao ser deixado demasiado tempo a sós com os seus próprios pensamentos. “Não serás o único,” pensava eu. Mas sentia pena deste excelente homem ter vivido meio século evitando confrontar-se a si mesmo.

Foi, portanto, com alguma tristeza que eu abandonei a cama B do quarto 614 do Hospital Egas Moniz. Mas não me interpretem mal, pois, apesar de ainda não totalmente recuperado das mazelas e com um tubo enfiado na barriga e a carregar sacos de mijo, é excelente estar de regresso a casa, ao seio da família. E este regresso torna-se especialmente doce pelo facto de receber em minha casa, na próxima semana, a minha querida mais-que-tudo, de visita a Lisboa. Ela bem quis vir antes, mas eu dissuadi-a – tinha lá algum jeito ela vir a Lisboa estando eu enfiado no hospital...

domingo, setembro 12, 2004

HOTEL EGAS MONIZ

“Ouvi dizer que no outro dia desmaiou,” diz-me a a minha nova amiga enfermeira Patrícia – que, afinal, se chama Maria João (o velho Matos é que lhe chamava Patrícia para a picar)! “É verdade,” assento. Aconteceu no dia em que fui à retrete mijar sangue, jperto do final da hora de visita: farto de estar deitado na cama, levantei-me e, imediatamente, senti uma tontura. Prevendo o desmaio, sentei-me rapidamente na poltrona. “’Tás bem?” perguntou a minha irmã, “’Tás muita branco...” E apaguei. Momentos depois, recobro os sentidos para ver reunidas à minha volta um grupo de enfermeiras aos gritos: “Como está? Sente-se melhor? Venha para aqui! Deite-se na cama!” Ainda não recomposto, levanto lentamente a mão direita e faço-lhes sinal para esperar. “Calma,” digo-lhes. Elas atiram-se ao ar: “Calma?! Você é que precisa de calma! Olhe que se tem desmaiado de pé, ninguém o agarrava! Vá, venha deitar-se na cama.” Novamente restabelecido, obedeço.

Hesitam em chamar o médico, mas, depois de me medirem a tensão, decidem não o fazer. “Agora está outra vez normal,” diz-me a enfermeira-chefe, “mas, quando desmaiou, estava baixíssima!” Depois, abrem a porta do quarto e deixam as visitas voltar a entrar. Os amigos já se foram, ficou só a família. Código azul, está tudo bem. “Fogo, pregaste-nos um grande susto,” diz o PP.

Mas fora esse único susto, a vida decorre plácida e agradavelmente. Especialmente agora que estou sozinho no quarto. Não é que não gostasse dos meus companheiros. Pelo contrário, a vida com eles sempre era mais emocionante. Especialmente à noite, quando ambos ressonavam à desgarrada, cada um tentando superar o outro em quantidade e qualidade de roncos: o ressonar cheio e poderoso do Arménio contra o ressonar exótico do velho Matos, pontuado aqui e ali por gemidos ocasionais. Contudo, sozinho no quarto, sou rei e senhor. E a primeira coisa que faço é subir completamente os estores, para inundar o quarto da luz de poente, glorificada em pores-do-Sol de vibrante rosa sobre o azul profundo do céu. O meu quarto tem uma vista fabulosa para Belém e para a foz do rio Tejo. Não muito longe vê-se o Museu da Electricidade e, mais atrás, o Padrão dos Descobrimentos. Ao fundo, o Mosteiro dos Jerónimos e o Centro Cultural espreitam por trás do contorno do casario.

Passo o meu tempo a ler e a ouvir música... quando não estou dormir ou a comer, claro. E penso. Penso muito. Ocasionalmente, a enfermeira Maria João vem ao meu quarto e gasta alguns minutos na conversa comigo. Por vezes, junta-se a nós outra enfermeira, que, por coincidência, é sua conterrânea (são ambas de Trás-os-Montes) e colega de quarto em Lisboa. É óbvio que estas meninas vão com a minha cara – o que me deixa bastante surpreendido! Porque, com a barba de uma semana e o cabelo desgrenhado e feito num novelo, eu pareço um sem-abrigo! I wonder... Ou é o meu charme que transcende a minha aparência exterior, ou elas gostam é de me ver de bata, porque me deixa o cu à mostra. A propósito, existe uma outra enfermeira que, sempre que entra a serviço, me vem perguntar se tive “perdas hemáticas.” Independentemente da minha resposta, a mulher não descansa enquanto não me olha para dentro das boxers! Começo a desconfiar cada vez mais deste seu interesse clínico, que não vejo em nenhuma outra enfermeira...

Contudo, no geral, gosto muito da vida de hospital. É uma vida incrivelmente simples. Só me pedem que descanse, enquanto tratam de tudo por mim e para mim. Não faço nada senão ficar de papo para o ar o dia inteiro – e poderá lá haver algo melhor que isto? Se não fossem as mazelas, eram umas férias do caraças! Mas a minha hora preferida – mais até que a hora da refeição, a hora de visita, o final da manhã ou o início da tarde – é quando já estou deitado na cama, para dormir, e ouço do outro lado do telefone a voz suave e meiga da Ruiva, a dizer que tem muitas saudades minhas. Tenho pensado muito nela e só quero pôr-me bem rapidamente, para poder estar com ela depressa... (Sim, que a bandeira já se vai hasteando!) Enfim, lamechices da treta! Não liguem.

sexta-feira, setembro 10, 2004

A RECUPERAÇÃO

Ao fim da manhã, recebemos no quarto 614 a visita de uma grave comitiva, formada pelo director do hospital, um médico e toda a equipa de enfermeiros. Perfilado ao longo da parede oposta às camas, o grupo permanece muito circunspecto, enquanto o médico informa o director a propósito do caso clínico de cada um dos pacientes. Como esperado, os meus dois companheiros de quarto, o Sr. Arménio e o Sr. Matos, recebem alta e ordem de saída. Quando chega a minha vez, ouço o médico sussurrar: “... Acidente de mota... traumatismo da uretra... tem estado a soro, na cama...” Entretanto, o director examina as radiografias. “Acha que ele já está pronto para se levantar?” pergunta o médico, em jeito de conclusão. O director nem hesita: “Basta olhar para ele! A avaliar pela sua posição tão espontânea e descontraída, está mais que pronto para se levantar!”

Pouco depois, a enfermeira Patrícia arfa e bufa enquanto me enfia umas meias muito apertadas pelas pernas acima. “Se não tivesse a sua clavícula fracturada, era você quem as vestia sozinho,” queixa-se ela. O Arménio ri-se: “As meias estão trocadas! Essas costuras que aí vê deviam ser para dentro, junto aos tomates!” Pouco importa. As meias servem apenas para activar a circulação nas pernas, depois de tanto tempo passado deitado. Já livre do soro, enquanto tomo o meu primeiro duche desde o acidente, a Patrícia interrompe-me constantemente, a perguntar se me sinto bem, em cuidados para eu não desmaiar.

Ontem de manhã, tomei um banho na cama, à gato (e aproveitei para finalmente limpar o sangue dos dedos!): o enfermeiro-chefe e a Patrícia esfregaram-me o corpo com esponjas ensaboadas, limparam-me, secaram-me, vestiram-me e fizeram a cama de lavado e sempre comigo em cima! Espectacular!... Embora não muito eficaz, claro. Há sempre partes do corpo que ficam por lavar, como o cabelo, por exemplo – e agora, no duche, ainda tiro bocados de sangue seco dos tomates.

Estou internado no Hospital de Egas Moniz devido ao traumatismo na uretra e porque o Hospital S. Francisco Xavier não tem serviço de Urologia. Basicamente, não consigo mijar direito. Mas o cateter urinário (o tubo ligado à bexiga pela barriga) despeja a urina directamente num saquinho de mijo que carrego sempre comigo. Tal como carrega toda a gente nesta ala do hospital.

Agora que recuperei a minha mobilidade, sinto-me muito melhor. Os dias anteriores foram mais difíceis (e as noites, então, é melhor nem falar!) – pregado à cama e impossibilitado pela clavícula fracturada de adoptar outra posição que não a deitada de costas, sofri de dores constantes nas costas e nas nalgas. A “posição espontânea e descontraída” mais não é que o modo mais eficiente que encontrei de aliviar as dores – dobrando as pernas e descansando o peso do corpo sobre cada nádega, alternadamente. Regressado à posição erecta, sinto os intestinos voltar ao activo. E, nessa tarde, ao sentar-me na retrete para evacuar, descubro que o meu corpo expele, às pinguinhas, não urina, mas sim o sangue acumulado na bexiga, devido à hemorragia interna. Bom sinal! Mais de meia hora (!) depois, aliviado e muito convicto de uma rápida recuperação, deito-me na cama, mesmo a tempo de ver aparecer as primeiras visitas dessa tarde.

E hoje vem muita gente! A minha mãe traz a Filó, uma amiga da família. Depois, aparece a Caracolitos e a minha irmã (o marido dela fica no jardim, a tomar conta do seu rebento, que não pode entrar; depois revezam-se). Vem também a minha amiga Ana, mestra de Reiki. A Chiquitita, a Salex Go-Go e o John chegam juntos. Este último, ao entrar no quarto para me encontrar em tão agradável companhia, diz-me de imediato que “não tem pena nenhuma de mim, rodeado de tantas meninas.” E eu replico que também compreendo porque é que ele decidiu aparecer... Rimo-nos todos juntos. Eu sinto-me magnificamente bem na companhia dos amigos. E especialmente por sentir que estou cada vez mais próximo da recuperação total!

quarta-feira, setembro 08, 2004

FREAK SHOW

A sala de urgências deve ser a que acorda mais cedo em todo o hospital. Calado, e já sem sono, sigo da minha maca a azáfama do pessoal à minha volta. Apercebo-me – com alguma surpresa, devo confessar – que todos os pacientes na sala são do género masculino. O que me leva a concluir que as urgências dos hospitais são separadas por sexo. Interessante. Não fazia ideia nenhuma. Mas, pensando bem, é a primeira vez que passo por uma experiência destas e que paro para reflectir sobre o assunto.

À minha esquerda, está o homem que passou a noite inteira a gemer: é muito alto e negro e está completamente vestido. De sapatos e tudo. Deitado na maca, com os pés de fora. Parece perdido. Periodicamente, os bombeiros entram na sala para trazer um novo paciente. Primeiro, um velhote raquítico que respira por meio de um tubo ligado directamente à garganta. A sua respiração é mais arrepiante que a do Darth Vader. Por uma abertura no tubo, sai uma ranhoca nojenta, que lhe cai para o peito. Ele parece não reparar... ou não se importar. Passado algum tempo, uma enfermeira repara: “Ó homem, está a sujar-se todo!” Ele nem reage, enquanto ela o limpa.

Depois, entra um homem com os seus quarenta e tal anos – vítima de acidente de viação, deu um jeito na coluna aquando do embate. Deitado na maca, traz a cabeça, o pescoço e os ombros imobilizados por um estranho aparelho. A sua cara contorce-se em espasmos de dor: “Não me podem tirar isto? É que me dá mais dores...” Após um certo lapso de tempo, alguém se digna responder-lhe: “Não, deixe-se estar. Tem de ficar imobilizado, senão pode ficar pior.” E ele remete-se à única (e pobre) defesa a que pode recorrer para suportar as dores que sente: as caretas.

A seguir, entra um rapaz – pedra nos rins. Este dá verdadeiros urros de dor, agarrado ao baixo ventre e contorcendo-se encima da maca. Passados largos momentos desta formidável exibição de sofrimento, alguém decide encostar a maca a um dos cantos da sala, correndo a cortina à sua volta.

No meio de todo este espectáculo de aberrações, aquilo que me causa maior impressão é o comportamento do pessoal médico. Perante o mais acutilante sofrimento, permanecem inflexivelmente frios, chegando mesmo por vezes a ser rudes. Contudo, entendo-os. Por um lado, torna-se necessário manter uma certa distância emocional dos pacientes, caso contrário sofre-se terrivelmente por todos. E, por outro lado, acredito que lidar todos os dias com o sofrimento acabe por tornar uma pessoa insensível. Entendo-os, sim. O que não significa que aceite. Ou que goste.

Finalmente, um auxiliar entra na sala para servir o pequeno-almoço. Eu estou faminto e devoro o mísero pão com manteiga e o copo de leite que ele me entrega – que me sabem como o mais delicioso manjar dos Deuses! “Quer mais um pãozinho?” pergunta o solícito auxiliar. Venha ele, caramba, que este corpinho sofreu muito e precisa de se restabelecer! Enquanto como, dou-me conta que ainda tenho os dedos sujos de sangue do dia anterior. Mas quero lá saber! O sangue é meu e o pão é meu – fica tudo em família e não há-de ser nada. Não há-de um gajo que passou pelo que eu passei agora morrer disto!

E, com a barriguinha aconchegada, a vida é mais suave. Mesmo na sala de urgências de um hospital. Mas descubro rapidamente que também não fico aqui por muito mais tempo... “Então, está pronto para ir para o Egas Moniz?” pergunta um jovem bombeiro. Egas Moniz?! Mas então não vou ficar instalado no S. Francisco Xavier?... Ao que tudo indica, a pergunta é de retórica, pois, enquanto eu me interrogo, já me mudaram de maca e me enfiaram numa ambulância, para nova corrida em direcção a novo destino.

A PRIMEIRA NOITE

A sala de urgências do Hospital S. Francisco Xavier é um caos. Várias macas, lado a lado, misturam pacientes sofredores dos males mais diversos. Como esta é a casa de partida de todos aqueles que se dirigem ao hospital com problemas de saúde, e que aqui iniciam o seu percurso de cura, a sala está cheia de gemidos e sofrimento até ao tecto. Médicos, enfermeiros e bombeiros entram e saem continuamente do local. E eu sou deixado numa maca a um canto.

Enquanto espero, recebo a visita do meu pai, que me traz artigos de higiene pessoal e alguma comida à socapa. Estou faminto, pois a última refeição que tive foi o almoço do dia anterior, mas ainda não me deixam comer. “Daqui a bocadinho vamos pô-lo a soro, a seguir vai dormir e depois logo come qualquer coisa, está bem?” diz-me uma médica morenita muito gira. Soro?! Mas desde quando é que isso enche a barriga a alguém?! Eu quero é comida a sério! Carnuça, caramba! Daquela que puxa carroça! Bebe lá tu o teu soro!...

Passa da uma da manhã quando finalmente me levam para a sala de ortopedia. Lá dentro, pedem-me para me sentar e pôr as mãos nas ancas, “à toureiro.” Depois, ligam-me ambos os ombros com uma ligadura a cruzar nas costas e, finalmente, apertam aquilo ao máximo – e sinto os ossinhos todos a ir ao sítio. Imediatamente (e pela terceira vez desde o acidente), sinto que vou apagar. E aviso. “Não vai nada. Isto já está feito.” E, com efeito, terminaram. E eu não desmaio.

De volta à sala de urgências, despeço-me do meu pai e, depois de me furarem as costas da mão direita para me porem a soro (como prometido pela médica morenita), recebo a visita de outro médico, que me examina o ombro: “Já está imobilizado, fizeram-lhe um cruzado posterior...” e, virando-se sorridentemente para mim, “Muito bem, esse ombro nunca mais lhe vai dar problemas!” Óptimo! Porreiro! Finalmente, boas – e convictas – notícias! Já estava cansado de desgraças...

E depois de todas as provações pelas quais passei, sinto que finalmente posso descansar. E bem mereço o meu repouso! E assim, vestido apenas com as meias e coberto por um lençol, adormeço rapidamente, apesar da luz, do barulho e da movimentação constantes na sala. A partir de determinada hora, contudo, a intensidade das luzes é reduzida, o barulho e a movimentação cessam e toda a sala mergulha num sono desejado, porém leve e dorido, entrecortado por um gemido ocasional aqui e ali.

O meu sono é intermitente. Não sinto grandes dores, mas incomoda-me a posição – não estou habituado a dormir de costas. Além disso, continuo (ainda e sempre) a expelir sangue pela pila, o que está longe de ser confortável. Felizmente, por volta das quatro e meia da manhã, uma enfermeira, descobrindo a poça de sangue em que durmo, apresta-se a limpar-me. Ainda me dói tudo na bacia, mas ela é meiga comigo. Lava-me com um líquido estranho, que verte profusamente sobre a minha pele – o seu contacto é frio, mas, ao escorrer pelas pernas, aquece rapidamente, chegando quase a queimar. Que sensação tão esquisita...

Já limpo e seco, volto a adormecer. Mas a noite é curta e o dia seguinte começa muito cedo.

terça-feira, setembro 07, 2004

PRIMEIRAS VISITAS

Enquanto espero no corredor, recebo a minha primeira visita: a minha mãe. Claro. Parece preocupada, mas eu estou bem disposto e as minhas piadas acabam por descontraí-la. Ela diz-me que falou com o médico (o cota), que a pôs ao corrente da minha situação. “Ele disse que tu te portaste muito bem, que foste muito corajoso.” Ah, orgulho de mãe não tem fim! Falando no Diabo, aparece o médico, que me esclarece acerca do meu estado: “Não há ruptura nem da bexiga, nem da uretra, mas há uma obstrução qualquer do canal, que pode ter sido provocada pela hemorragia – um coágulo qualquer que ficou aí. Agora é descansar e esperar que isso se dissolva. Se não acontecer, pode ter de ser operado. Mas, por agora, é recuperar.” “Vou ser internado?” pergunto. “Sim, pelo menos por alguns dias,” responde o médico, como quem dá notícias tristes. Mas eu estou feliz – vou ter férias! Além disso, nunca estive internado na vida; vai ser uma boa experiência!

Pouco depois, chega o meu amigo do Kung Fu. Terminou o turno e está de saída. “Quando estiveres bom, vamos todos tomar um copo, para comemorar.” Acedo, a sorrir, e despedimo-nos. “Este rapaz foi o teu anjinho-da-guarda,” diz a minha mãe, “Assim que cheguei ao hospital, liguei-lhe, ele veio logo ter comigo, acalmou-me e explicou-me a situação. Gostei muito dele! Muito simpático!” Sim, mas, acima de tudo, um tipo impecável, revelador de uma atenção e dedicação muito para além do seu dever. Daqui te lanço o meu Obrigado, meu amigo! Espero que tenhas sempre à tua volta o apoio e atenção que dedicaste a este gajo que não conhecias de lado nenhum.

De repente, lembro-me: “Epá, as minhas coisas! Ele pôs-me tudo num saco que deixou amarrado à maca! Recomendou-me que não o perdesse e nunca mais me lembrei disso!” A minha mãe acalma-me: “Não te preocupes, ele deu-me o saco.” Grande amigo! “Tens o meu telemóvel?” pergunto, “Quero ligar à Ruiva.” No meio de todo aquele tormento, pensar nela faz-me sentir bem e calmo. Anseio por ouvir a sua bela voz doce... But, alas, não tenho rede no corredor...

Quando o meu pai aparece, vem com o seu ar de poucos amigos. Obviamente, está lixado, porque toda esta trapalhada podia ter sido facilmente evitada – mas não, o menino tinha que sentar o seu cu na mota! Eu ignoro as suas trombas. Dada a frequência com que ando de mota, havia mais probabilidades de sofrer um acidente de mota caso fosse a caminhar no passeio e apanhasse com uma mota na mona! Se este acidente aconteceu, é porque tinha de acontecer. End of story.

Os meus pais deixam-me e são substituídos pelo PP, que mostra um ar abatido. Pede-me logo desculpas e pergunta-me como estou. Estou eléctrico! O pior já passou e agora sinto-me animado. E desato a contar-lhe as minhas peripécias desde que nos separámos, num tom leve de humor negro a que não falta nenhum dos pormenores gore. “Fala mais baixo,” diz-me ele com dificuldade, enquanto rimos ambos às gargalhadas em pleno corredor do hospital. Pouco depois, aparece o meu irmão, que, para não fugir à regra, também mostra uma cara apreensiva. Mas eu tenho boa disposição para dar e para vender! Comento com ele que perdi tudo pelo caminho – só me deixaram... as meias! Que simpáticos! Não basta estar fisicamente diminuído, como ainda por cima com um aspecto ridículo e humilhante. E não há nada mais ridículo no mundo que um homem nu e de meias. Mas, vá lá, podia ser pior! As meias podiam ser daquelas compridas e puxadinhas até aos joelhos. E com losangos!... Bem vistas as coisas, até nem estou tão mal como pensava...

Cerca de uma hora depois, lá se lembram os médicos de mim. E, depois de me fazerem entrar no gabinete de Ortopedia, chegam à conclusão que me vão transferir para o Hospital S. Francisco Xavier, que é o meu hospital de residência. Volto a sair para o corredor sem sequer me tocarem. Mudam-me de maca, quase arrancando o meu novo tubinho de mijar (por desatenção de uma enfermeira que “não reparou”) e, pouco depois da meia-noite, abandono finalmente o Hospital Fernando Fonseca. Após nova viagem de ambulância, chego ao meu novo destino.

TORTURA NA SALA DE RAIO-X

“Vai doer?” pergunto ao médico novo. “Não.” Mas não me sinto convencido – quando a dor é dos outros, nunca custa nada. “Queres o bisturi?” pergunta o médico cota, e passa a faca de trinchar ao outro mesmo em frente aos meus olhos. “Sabes quanto precisas de cortar? É um bocado assim,” e o cota indica a distância com os dedos. Sinto-me como uma vaca no matadouro – mas esta gente não se toca?! É o meu corpo que se preparam para retalhar! E, sim, apesar da anestesia, um gajo sente a lâmina a agadanhar a carne, sim! Se eu não estivesse de meias, os gajos podiam ter visto os meus dedinhos todos arrepiados de dor. Depois de feita a ligação directa, tiram-me mais radiografias. O resultado é o que podem ver a seguir.


A bola brilhante é, claro, a bexiga. Mais abaixo, a pequena minhoca em arco é o interior da pila, iluminado pelo contraste. Como se pode ver, não existe ligação entre a bexiga e a uretra – e, basicamente, é este o grande problema. Só por curiosidade, nota-se à direita da bexiga o encaixe da cabeça do fémur esquerdo no osso ilíaco. Bonito, não é?... Eu sempre adorei ossos.

Após analisarem as radiografias, os médicos passam à acção. Primeiro, pedem-me para urinar. A insistência deles leva-me a perceber que este ponto é de importância vital, portanto, cerro os dentes e, evitando pensar na dor que se vai seguir, esforço-me ao máximo para mijar. Consigo apenas umas pingas. De sangue. Os médicos não parecem satisfeitos. Resolvem então recorrer aos grandes meios: e vai de escarafunchar outra vez a pila com a sonda! Desta vez, o médico novo não tem quaisquer contemplações – ele puxa e enfia e repuxa e empurra e dá-me dois e três e quatro nós na pila, uns em cima dos outros. Nunca a minha pila fora tão maltratada, coitadita! “Relaxe. Respire fundo.” Começo a pensar que o gajo tira gozo disto... “Pôça, doutor, você está a fazer de propósito, diga lá!...” atiro eu. Ouço risos contidos de alguns dos auxiliares.

Subitamente, a minha propensão para as piadinhas acaba. As dores na pila são tantas que começam a afectar morbidamente todo o resto do corpo. Dói-me horrivelmente toda a zona da bacia e não sinto as pernas. Não consigo respirar. Sinto-me mal. Sinto-me mal como nunca na minha vida me senti! É um mal-estar extremo, para o qual não existe redenção. É um mal-estar transbordante de desespero impotente no seu paroxismo, provocado por uma insuportável e infinita dor, a rebentar todos os limites de resistência. É um mal-estar do género estou-a-sofrer-há-horas-e-não-há-fim-para-esta-merda-e-NÃO-POSSO-FAZER-NADA-PARA-ACABAR-COM-ISTO! Tirem-me deste pesadelo! Acabem com o meu sofrimento! Só não grito aos gajos que me cortem de vez a pila bem rente e me esmigalhem a cabeça com uma marreta porque estou demasiado ocupado a ranger os dentes, desesperadamente agarrado à ínfima réstia de calma que o último pedaço de consciência, intocado pela dor, ainda mantém vivo.

“Estou a sentir-me muita mal!...” aviso. “Tenha calma e relaxe. Respire fundo.” “Estou a sentir-me MESMO muita mal!” insisto, “não estou a brincar!!” E logo a seguir: “Pronto! Aí está, eu vou-me embora...” O médico cota pergunta: “Vai-se embora?! Vai-se embora para onde?” “Vou desmaiar...” respondo. “Você está deitado, não pode desmaiar.” “Não interessa. Vou apagar...” “Tenha calma. Respire fundo. Isto está quase.”

Não sei como, mas não chego a perder totalmente os sentidos. E, como prometido, pouco depois o martírio termina. Mas a dor perdura. E mais uma vez me pedem para urinar. Tento fazê-lo, mas estou desfeito. Não tenho forças para mais nada. “Há bocado estava a esforçar-se mais,” dizem-me os médicos. “Eu sei. Calma... Eu consigo... mas preciso de alguns momentos para recuperar.” O médico cota aproxima-se de mim: “Não temos tempo. Como sabe, há outras pessoas que é preciso atender.” “Eu sei, doutor. Eu vou urinar. Dê-me apenas uns minutos...” Após uma pausa, o médico decide conceder-me o meu desejo e dá-me dois minutos de tréguas: “Vá, descanse um pouco.”

Respiro fundo repetidas vezes e descontraio os músculos, ainda tensos pela provação. Depois, volto à liça. Et voilá, os meus esforços são recompensados com uns pequenos jactos de urina mesclada de sangue. Os médicos parecem satisfeitos. O médico cota sorri largamente para mim: “Isto é muito bom sinal! Afinal, parece que você teve muita sorte! Por momentos, vimos isto muito mau, sabe...” No shit?!... Olha, as piadinhas voltaram. Parece que já estou bom e sorrio, aliviado.

Com o meu novo tubo enfiado na barriga, mudam-me para nova maca e ala da sala de radiografias. No corredor, a minha vista apanha um relógio. Passa das dez e meia. Quatro horas depois do acidente! Em breve estacionam a maca junto aos gabinetes de Ortopedia. Na sala de radiografias, os médicos aproveitaram para tirar um raio-x da minha clavícula, que se vê abaixo.


Bonita radiografia, não é? A clavícula está partida, mas para o olho destreinado nem parece. Adoro o pormenor do pendente do fio que uso ao pescoço, que se imiscuiu na foto à descarada. Gosto tanto desta radiografia que estou a pensar em emoldurá-la...

COMPASSO DE ESPERA

Assim que entro na sala, deitam-me sobre a mesa e pedem-me para me deitar de lado, sobre o ombro direito. Digo-lhes que é impossível, porque é esse o ombro que tenho magoado do acidente. Mas, aparentemente, o lado esquerdo não presta, porque insistem comigo para rodar as ancas o mais possível para a direita, evitando apoiar-me no ombro magoado. Assim o faço, dentro do que me é possível. “Agora, mantenha essa posição,” diz o médico cota. E desaparece num nicho contíguo, de onde eu calculo que os gajos manipulem a maquineta de raio-x.

Entretanto, todo torcido naquela mesa e apenas de meias vestidas (numa figura tão ridícula que eu próprio não consigo evitar sorrir), eu espero. E espero, e espero... Que seca monumental! A dada altura, farto de tanta espera e com o corpo dorido da posição, começo a tamborilar com os dedos no tampo frio da mesa, para me distrair. Depois, ponho-me a assobiar. E, finalmente, também a cantar. Excertos de músicas dos Iron Maiden, se querem saber... Sempre gostei de assobiar o final de “The Prophecy,” do excelente álbum “Seventh Son of a Seventh Son” – é calmante.

Após um bom bocado, o médico reaparece. “Então, já está?” pergunto. “Agora é que vamos começar. Tivemos um problema com a máquina, não estava a funcionar...” Belo! E eu para aqui preso nesta posição idiota! Ora, obrigadinho por me avisarem! Mas agora já está tudo a postos e começam por me fazer uma ecografia à bexiga. Parece não haver ruptura (o que é bom), mas a bexiga está cheia. “Tem vontade de urinar?” Respondo que nem por isso, enquanto penso no carvão em brasa dentro da pila. Pedem-me para tentar, e eu faço-o... mas não com grande empenho. Torna-se necessário fazer outro tipo de testes. O médico novo pega-me na pila e toca de enfiar outra vez a sonda lá para dentro (que fixação do prepúcio, a destes gajos!)! Curiosamente, o suplício é de pouca duração (ou então, sou eu que já me estou a habituar a esta porcaria!).

Enquanto tiram as radiografias necessárias (na tal posição incómoda), aproveito o intervalo para perguntar ao médico cota qual o meu estado. Obviamente, não quero ficar impotente ou, pior ainda, estéril. E para mais agora, que namoro uma bela Ruiva! Momentos antes, quando confessara os meus receios ao meu amigo do Kung Fu e ele replicara que “impotente é que não!” ao que eu respondera que “nem pensar! Antes impotente que estéril, porque a impotência cura-se!” E, de facto, dos casos de impotência cuja causa é física, apenas uma pequena minoria é irreversível. Portanto, mesmo ficando impotente, um gajo tem sempre boas hipóteses de recuperar. Agora ficar estéril... Que ideia aterradora! Eu quero vir a ser pai!

O médico diz-me que acabam de fazer um teste de contraste, onde me introduziram pela pila um líquido que aparece brilhante nas radiografias, que revelou não haver ruptura da uretra, o que é bom sinal. Contudo, o canal está interrompido por algo, provavelmente algum coágulo de sangue, devido à hemorragia. Portanto, o que se preparam para me fazer é enfiar-me um tubo pela barriga directamente à bexiga, para fazer o teste de contraste por esse lado também. Depois de esclarecido, quedo-me a pensar se não teria ficado melhor na ignorância... E, enquanto os médicos se preparam para o passo seguinte, eu pondero até que ponto não teria sido bem melhor para mim se a sonda tivesse mesmo saído pelo olho do cu aquando da uretroscopia (a tortura da sonda pela pila adentro)...

A SONDA

Um gajo novo pede-me para lhe explicar o que me aconteceu. Faço-o. “Então e urinou sangue, foi?” “E continuo a fazê-lo. Sinto-o a sair enquanto falamos,” digo-lhe. “Deixe-me ver isso...” Assim que baixo as calças, nova cascata de sangue se abate no chão. As três ou quatro pessoas à minha volta parecem apreensivas. Ouço alguém dizer “Chamem o médico urologista!...” enquanto me deitam na mesa. Estou praticamente nu, com as calças para baixo. Já não tinha a t-shirt e, entretanto, tiraram-me também o casaco. Continuo a sangrar.

Entretanto, chegam os médicos urologistas – um mais velho, que dá as ordens, e outro mais novo, que as executa. Mandam tirar-me os sapatos e as calças. E aqui começa o meu calvário...

Primeiro, pedem-me para mijar. Consigo, em parte, mas torço-me de dores atrozes. É como se tivesse um carvão em brasa dentro da pila. Então, decidem jogar pesado – e, sem qualquer aviso, enfiam-me uma sonda pela pila adentro. “Isso DÓI!!!” grito. “Relaxe. Respire fundo,” dizem os médicos. Tento acalmar-me: “Relaxa, okay... respira fundo, sim... ARGH!!... Isso é fácil de dizer!” Agarro o braço do médico mais cota e, imediatamente, sinto toda a gente paralisada naquela sala! “Largue o braço,” diz-me o médico, e o seu tom não é para brincadeiras. Por um breve (e estranho) momento, sinto-me de volta aos meus tempos de escola secundária – um piolhoso qualquer tenta sacar-me alguns trocos e, quando lhe sustenho o braço, tentando impedi-lo de me tocar, o ambiente gela à minha volta: “Bad move, dude...” “Largue o braço, por favor,” repete o médico. Eu obedeço.

Entretanto, dou-me conta de duas ou três cabeças que pairam sobre a minha. O gajo à minha direita agarra o pendente do meu fio e esfrega-o entre os dedos. Tenta distrair-me: “Onde é que compraste isto?” “Foi uma ex-namorada que me ofereceu,” esclareço-o. “Uma ex-namorada, pá?! Então não o devias usar!” “Porque não?! Ela deu-mo, agora é meu! Gosto do pendente e uso-o quando quero e independentemente dela!” Ele ri-se. “Pensei que o usasses por praticar alguma arte marcial... Eu faço Kung Fu.” “Ah, compreendo. Mas não. Eu cá só danço. Mas gostava de aprender uma arte marcial. Talvez a gente possa trocar aulas, um dia destes – tu ensinas-me Kung Fu e eu ensino-te Danças de Salão.” Ele ri-se: “Põe-te bom e a gente combina isso.”

Entretanto, mais dor. Sinto-me como se a sonda que me estão a enfiar pela pila fosse sair pelo cu! Ranjo os dentes e urro de dor. “Relaxe. Respire fundo.” O auxiliar de enfermagem praticante de Kung Fu, que (coincidência das coincidências) partilha ambos os meus primeiros nomes, só que na ordem inversa, continua a tentar distrair-me. A dor é tal que não o consigo ouvir. Sorrio: “Tens consciência que não estou a ouvir nada do que estás a dizer, não tens?” Ele sorri de volta, mas continua a fazer o possível para me desviar a atenção da dor.

De repente, acaba. É necessário tirar-me umas radiografias e vou ser enviado para outra sala. Metem-me numa maca e lá vou eu. Quem me guia é o meu amigo do Kung Fu. A meio do caminho o gajo encosta a maca a uma janela. “Aqui tens rede. Precisas de ligar a alguém, a avisar que estás no hospital?” “Preciso de ligar à minha mãe.”

E falo com ela. Apesar das minhas palavras calmas e reconfortantes, ela mostra-se preocupada. Claro – mãe é mãe. Mas o meu novo amigo dá-lhe o número de telemóvel dele, para ela lhe ligar directamente assim que chegar ao hospital. Depois, seguimos viagem. O meu novo destino é uma sala pequena, com uma máquina enorme montada sobre uma mesa onde um gajo se deita. Os médicos urologistas estão à minha espera. O meu amigo, ao despedir-se, diz-me: “As tuas coisas estão neste saco, que está identificado com os teus dados, nesta etiqueta. Vou amarrá-lo aqui à maca. Não o percas. E até já.”

NAS URGÊNCIAS

Durante a viagem de ambulância, o Élvio preenche um monte de documentos com os meus dados vitais: nome, idade, morada, telefone, essas coisas. Chegados ao Hospital Fernando Fonseca, ele senta-me numa cadeira de rodas e leva-me para o Serviço de Urgências, onde dá entrada do meu caso. Enquanto esperamos pacientemente por passar pela triagem, de onde nos remeterão para o serviço competente, chamo o meu fiel socorrista Élvio àparte: “Ouve, man, isto é um bocado embaraçoso, mas eu estou-me a mijar todo e não consigo evitá-lo, pá...” “A sério?... Queres ir à casa-de-banho?...” “Yá, julgo que é melhor. É que está a sair enquanto estou aqui a falar contigo!”

Depois de uma breve hesitação, ele lá se decide a levar-me rapidamente à casa-de-banho. Eu estou apreensivo. Por um lado, sei que em alturas de enorme tensão e perigo, as pessoas podem mijar-se ou borrar-se todas. É uma reacção fisiológica normal. Os animais também o fazem, para aliviar peso e poderem fugir mais levemente do seu predador. Contudo, no meu caso, não me posso esquecer que magoei os tomates aquando do acidente. O que significa que posso muito bem não estar apenas a mijar urina...

Assim que me vejo a sós na casa-de-banho, baixo as calças. As cuecas, originalmente brancas, estão vermelhas de sangue... “Por vezes, detesto ter razão!” penso eu. Baixo as cuecas e uma cascata de sangue, líquido e já coagulado, espalha-se pela retrete, pintando tudo de vermelho. “Hmmm... This is not good!...” murmuro para mim próprio. Chamo o Élvio. Ele entra e dá de caras com aquela cena gore. “Élvio, isto não é bom.” O gajo passa-se: “Isso aconteceu agora?!” “Yep. Afinal, não era urina...” Num ápice, ele puxa-me as calças para cima, senta-me na cadeira e dispara comigo de volta para a triagem. Por um momento, tento imaginar a cara do gajo que decidiu usar a casa-de-banho depois de mim e deparou com aquele banho de sangue... Depois, os meus pensamentos ficam bastante mais negros, enquanto me interogo acerca da gravidade do assunto...

No exacto momento em que chegamos à triagem, estão a chamar o meu nome. O Élvio está um bocado excitado enquanto explica o sucedido à enfermeira de serviço, desde o momento em que me foram buscar de ambulância ao local do acidente até ao episódio na casa-de-banho. Eu tenho os dedos manchados de sangue e uma outra enfermeira dá-me algumas compressas para me limpar, enquanto a enfermeira de serviço me faz algumas perguntas, para complementar a informação dado pelo Élvio. Entretanto, continuo a mijar sangue às golfadas. Sinto-me exasperado e sem paciência para aquilo – toda a gente à minha volta me parece lenta e estúpida – o que eu preciso é de um médico que me resolva o meu problema! A outra enfermeira pergunta se preciso de mais compressas. Rosno-lhe que não. Depois, mais controlado, acrescento, quase em surdina: “... Obrigado.”

Avaliado o meu caso, decidem enviar-me para a sala de Pequenas Cirurgias (nome sugestivo, hã?). Antes de se despedir, o Élvio passa-me uma folha cheia de etiquetas autocolantes com os meus dados e o meu número de entrada no hospital – e é isto que eu vou passar a ser de agora em diante e enquanto estiver no hospital: o episódio n.º 4008371. Depois, ele deseja-me as melhoras e desaparece.

A seguir, enfiam-me numa sala fria, sombria e despojada, onde as paredes parecem revestidas a metal (ou serei eu que não estou a ver bem?). Ao centro, está aquilo que me parece uma mesa de operações, também metálica. Sento-me nela. A sua superfície polida está fria.

CRASH!

Durante escassos momentos, tudo é confusão. Confusão que contrasta brutalmente com a calma que se instala quando paramos de arrastar pelo chão. O meu primeiro pensamento é de auto-manutenção: não sinto grandes dores, para além de alguns amassos, e parece-me tudo bem. Antes de me levantar do chão, ainda penso na mota – há apenas quinze dias (!) saída do stand...

A porta do pendura do carro abre-se e sai de lá uma cota que indaga: “Então?! Não nos viu?!...” Soa-me estranha a pergunta... Apetece-me gritar-lhe: “Se não a vimos?! Pôrra!!! Vimo-la em todo o lado! O seu carro eclipsou o mundo inteiro! Não havia maneira de lhe escapar!” Mas decido ignorar a mulher. Afinal, nem era eu quem ia a conduzir a mota...

De pé, avalio mais aturadamente os danos pessoais... Dói-me o cotovelo direito – por baixo da manga do casaco, devo ter um belo arranhão. Ao tentar ver se a manga se rasgou, apercebo-me que algo não está bem com aquele ombro – sinto peças fora do sítio. “Devo ter o ombro deslocado,” penso eu. Não me dói, mas imobilizo imediatamente o braço ao peito. Contudo, apercebo-me de uma dor que rapidamente se sobrepõe a todas as outras: uma valente dor nos tomates. Lembro-me num repente de ter sentido as minhas calças a serem violentamente puxadas para cima, amassando os meus tintins, enquanto roçava o cu pelo chão, durante o acidente. Não sei se da dor, se do choque, sinto a cabeça tonta e a vista turva... vou desmaiar. Sento-me calmamente no lancil à beira da estrada e a sensação passa. Mas a dor nos tomates continua...

Entretanto, o meu amigo PP já levantou a mota do chão e está em conversações com o pai da rapariga que guiava o carro (a cota pendura era, com certeza, a mãe). A jovem condutora, uma pitinha toda bem, chora desalmadamente, em claro estado de choque. O PP observa o meu ombro e vaticina uma luxação da clavícula: “Aconteceu o mesmo ao Migas, naquela ocasião, lembras-te? E a mim também, da outra vez.” Chama-se a ambulância?... Chama-se a ambulância. Apesar de tudo, sinto-me feliz – vou andar de ambulância pela primeira vez na minha vida! Olarila!

Assim que a ambulância chega, poucos minutos depois, trepo para o seu interior e descrimino o rol das minhas mazelas ao bombeiro socorrista. O gajo despe-me as calças, olha-me para os tomates e (enquanto eu penso se acaso este pode ser classificado como um momento muito gay) conclui que, para além de alguma vermelhidão, parece estar tudo bem. Fico muito mais aliviado... porque confesso que estava com medo de despir as cuecas e ver os tomates a vir atrás...

Élvio, o bombeiro, diz-me que vai precisar de me cortar a t-shirt, para tratar do meu ombro. Eu oponho-me – aquela t-shirt é-me preciosa, porque está ligada a um momento muito querido do meu passado – sempre que a visto, lembro-me desse momento e dos excelentes amigos com quem o partilhei. Não, não a quero cortar. O Élvio é um bacano e facilita: ajuda-me a tirar a t-shirt com jeitinho (é larga e fazêmo-lo sem problemas), mas pede-me que não conte a ninguém que ele fez aquilo: “Quando chegámos ao local, tu já estavas sem t-shirt, okay?” “No problem,” respondo. Depois, com a ajuda de uma ligadura, segura-me o braço ao peito.

“Para que hospital vão?” pergunta o PP. “Amadora-Sintra,” é a resposta. “Jacaré, vou ter contigo ao hospital assim que resolver a questão do acidente. Ficas bem?” “Na boeca, man! Vou andar de ambulância!” Ao despedir-se de mim, o PP leva a minha t-shirt consigo, mas aconchega-me o meu casaco sobre os ombros.

E, com todas as luzes e sirenes a que tenho direito, lá sigo de ambulância para o Hospital Fernando Fonseca, mais conhecido por Amadora-Sintra.

HONDA CBR600F4

Está um dia glorioso! O tempo está óptimo, o Sol brilha e o meu grande amigo PP quer apresentar-me à sua nova menina. Por isso, aproveitamos o meu dia de folga para ir dar umas curvas com ela. E ouvi-la ronronar sobre o asfalto...



Não é bela? Até eu, que nunca na minha vida liguei pevas a qualquer tipo de bicho com rodas (seja mota, seja carro), não consigo ficar indiferente! Especialmente quando ela nos leva a dançar pela estrada fora, ondulando o seu refulgente corpo metálico ao sabor das curvas do tapete negro que se desenrola à nossa frente e até onde a vista alcança, sentindo a textura do asfalto a vibrar sob as plantas dos pés, o vento a aconchegar-nos a roupa ao corpo, o cheiro dos pinheiros a envolver-nos numa voracidade de movimento cujo único bálsamo é a saciedade dos quilómetros percorridos, que deslizam por nós fácil e habilmente devido à combinação da perícia do piloto e da eficiência da máquina!... Meta: Cabo da Rocha.

Chegados ao destino, deixamos a menina a descansar da corrida e descemos pelo flanco da falésia até à sua base, onde estamos mais perto daquele mar sem fim. Deitados ao comprido sobre os pedregulhos, gastamos alguns momentos a lagartar ao Sol quente daquele fim de tarde de Verão, filosofando sobre a Vida... E sobre gajas também. Evidentemente.

Pouco depois, regressamos. Fazemos o caminho por Sintra, para terminar o dia em pleno com uns travesseiros na Periquita (que o Jacaré é bicho guloso!). Mas há obras na estrada e encontramos o trânsito parado em muitos sítios... Coisa que não é problema para uma esguia máquina de duas rodas como a menina do meu bom amigo. E, com efeito, enquanto os carros, parados em fila, esperam e desesperam com os condicionamentos no trânsito, nós avançamos pela direita sem qualquer problema...

... Até que um dos carros parados à nossa frente, de repente, mete o pisca para a direita e, no mesmo momento, se destaca da fila para se atravessar... mesmo no nosso caminho!

O horizonte que à nossa frente estava tão azul, num piscar de olhos ficou todo preto! O meu último pensamento antes de embatermos no carro é aquela impotente tomada de consciência que normalmente anuncia a um gajo imediatamente antes de um acidente que não há qualquer hipótese de evitar a colisão. Depois, não há tempo para mais nada. Nem sequer para fechar os olhos...

sexta-feira, setembro 03, 2004

“FAHRENHEIT 9/11”

Michael Moore, o escritor, produtor e realizador de “Fahrenheit 9/11” (e também de “Bowling for Columbine,” a ver a todo o custo!) é um bom sacana! Com aquele seu corpo anafado e o ar meio otário e de quem não quebra um prato, o gajo vai fazendo uns bons estragos! Desta feita, o alvo visado é George W. Bush, num filme/documentário que, tal como o jOhn, um dos meus melhores amigos, diz, serve para os americanos abrirem os olhos. E eu digo: para abrirem os olhos para a merda que comem todos os dias... e gostam!

O filme abre com uma exposição da polémica criada em torno das eleições que tornaram George W. Bush Presidente dos Estados Unidos da América, revelando as ligações, os esquemas e as falcatruas que tornaram o facto possível. Depois, dá uma ideia da vida dura deste Presidente ao longo do seu mandato, trabalhando arduamente nos campos de golfe e de papo para o ar no rancho do papá. E, finalmente, partindo do atentado de 11 de Setembro ao World Trade Center, desvenda a verdade suja e escusa por trás do negócio da guerra do Iraque – as parcerias e as relações comerciais da família Bush com os sauditas e a família bin Laden. E a batelada de dinheiro que essa gente andou a ganhar antes, durante e depois da guerra.

Tudo isto leva um gajo a pensar... até que ponto é que não foi tudo planeado. A começar pelo atentado ao WTC. Detesto teorias da conspiração, mas a verdade é que a guerra é, sem dúvida, o negócio mais lucrativo de sempre. E estes gajos souberam aproveitá-lo. Demasiado bem.

E às custas de milhares de vidas. De inocentes? De ingénuos, isso sim. De americanos de baixos estratos sociais, à procura de uma maneira (uma qualquer!) de singrar na vida, engajados pelo Exército para serem deportados para o meio do deserto, no outro lado do Atlântico, num país que foram ensinados a temer e odiar, e para, patrioticamente, matar iraquianos (militares ou civis, pouco importa – bad guy é bad guy e eles parecem todos iguais!) ao som de “The Roof is on Fire,” porque querem “ver Bagdade a arder.” Michael Moore fala com estes soldados e vemos uma cambada de putos imberbes enviados para a guerra a pensar que aquela merda é mais um jogo de computador. Imaginem o choque quando descobrem que não é. E imaginem o choque maior quando, finalmente, se apercebem que foram mandados para o Iraque para fazer o trabalho sujo do Governo Americano, que, refastelado em casa, com os rottweilers à porta, vai metendo o dinheirito ao bolso. Enquanto putos equivocados matam e morrem numa guerra que não é deles.

Não é por acaso que o filme fecha com citações de George Orwell do sublime “1984” (um dos meus livros preferidos de sempre, a par do “Admirável Mundo Novo,” de Aldous Huxley). Porque, meus amigos, isto é “1984,” cuspido e escarrado – o controlo da população pela cultura do medo irracional a um inimigo estranho e incompreensível e a manutenção de um perpétuo estado de guerra que tanto alimenta como é alimentado por esse medo.

Ao sair da sala de cinema, uma pergunta pesa-me mais que todas as outras na cabeça: quanto dinheiro e poder precisa um gajo para se sentir feliz? Ou, por outras palavras, quantas pessoas precisa um gajo de pisar e/ou matar para satisfazer a sua sede de dinheiro e poder?... Aparentemente, o céu é o limite (... ou deveria dizer “o Inferno é o limite”?), para gajos como George W. Bush.

Já o disse antes e volto a dizê-lo: é por coisas destas que eu acredito que a raça humana está destinada à extinção. O homem tem medo do próprio homem. Vamos acabar por nos devorar uns aos outros. Até o último de nós morrer de indigestão.

quarta-feira, setembro 01, 2004

BRUXO PALERMA

Sexta-feira passada, dia 27 de Agosto, vou à praia com a Chiquitita, a Salex Go-Go e o John. Entre dois mergulhos na água gelada da Fonte da Telha, recebo uma mensagem escrita inesperada. Da Caracolitos, uma ex-namorada. A pedir muitas desculpas por não dar notícias há tanto tempo e a convidar-me para sair na noite seguinte, para conversar e dançar.

“Deve estar de mal com o namorado,” penso. Detesto ser cínico, mas a verdade é que esta rapariga só me procura quando precisa de um ombro para chorar. Ou seja, quando lhe faltam ombros de namorado. Há dois anos atrás, saída de fresco de uma relação falhada, procura o meu apoio. Durante largos meses, somos os maiores amigos. Entretanto, ela arranja outro namorado e, a partir desse momento, deixa de me procurar. O caso entristece-me porque julguei que houvesse entre nós uma relação especial de amizade. E, apesar dela demonstrar sempre muito entusiasmo por me ver, a verdade é que lhe falta invariavelmente o tempo para estar comigo. Portanto, deixo cair. Percebi imediatamente a onda dela.

Ano e meio depois, vindo do nada, recebo este convite para conversar e... dançar. Dançar?! Há quanto tempo não me convida ela para dançar! Fico logo com a pulga atrás da orelha. Mas recuso o convite – já tenho planos para passar todo o dia seguinte com uma rapariga maravilhosa (não é, Ruiva?). Mas combinamos voltar a falar no início da semana seguinte.

Hoje, ligo-lhe. E acordamos sair na próxima semana para dançar e pôr a conversa em dia. Contudo, antes de desligar, atiro a pergunta que me queima a língua: “E tu, como andam as coisas contigo?...” “Diferentes...” responde ela. (Já te apanhei!) “Ah... Diferentes? A propósito, como está o teu namorado?” Pausa. “... Não está.” (Bingo!) “Ah, bom! Então é por isso que as coisas estão diferentes...” “Sim... Nós temos muito que falar, depois eu conto-te tudo.” Mas eu ainda não estou satisfeito: “Mas então é recente? Há quanto tempo é que acabaram?” “Há cerca de um mês.” Caramba, eu devo ser bruxo! De vez em quando, o mundo funciona mesmo como um relógio suíço!

No meio de todo este caso, acho interessante o facto desta rapariga invariavelmente me procurar quando precisa de apoio emocional. E não é a única! No geral, todas elas o fazem. Tanto as ex-namoradas, como as amigas (embora, felizmente, a maioria delas não me procure apenas para isto). Mas, em relação às ex, é de notar que, na maior parte dos casos, eu sou o único ex-namorado com quem elas continuaram a relacionar-se depois de terminado o namoro! Gostaria de pensar que é pelos meus lindos olhos, mas sei bem que não. É pelas minhas orelhas! Porque, acima de tudo, sou um bom ouvinte. E porque, acima de tudo, e paralelamente à relação amorosa, também estabeleço uma relação de amizade com as minhas namoradas. E isso faz toda a diferença. Porque, regra geral, a amizade perdura para além do namoro.

Se isso diz muito de mim, diz ainda mais dos gajos por esse mundo afora. Diz que são uma cambada de palermas! Palermas egoístas que gastam o tempo todo preocupados com o próprio piço e depois se queixam que não compreendem as mulheres! Pois se nem sequer se dão ao trabalho de as ouvir!

Por outro lado, se não as ouvem, também não as aturam... E, nesse caso, se calhar são eles que são espertos e eu que sou palerma... Oh, well...