Ao final do dia, de regresso a Lisboa, e depois de uma viagem mergulhado numa espiral de tristes pensamentos, chego a casa no mais abatido estado de espírito. Após um banho quente e reconfortante, tomo uma
importante decisão: tenho de
falar com a Ruiva.
Tenho de lhe dizer o que
sinto e o que
penso – rematar as tais
pontas soltas. Não o pretendo fazer movido por uma vã esperança de a reconquistar (só um gajo
cego, surdo e estúpido conseguiria ainda acreditar nessa possibilidade), mas sim porque acredito que me sentirei melhor
comigo mesmo depois de o fazer.
Respiro fundo antes de marcar o número do telemóvel dela. Ela atende. Parece cansada. Mas eu não planeio demorar-me e vou directo ao assunto: digo-lhe que estou
desiludido e
triste por ela não ter demonstrado qualquer
vontade de fazer uns míseros 30 quilómetros para se encontrar comigo. O tom de voz dela muda radicalmente e denota bem a sua irritação. Diz-me rispidamente que, se não foi ter comigo, não o fez porque simplesmente não lhe apeteceu, mas sim porque estava muito
constipada e cheia de
dores de cabeça. Depois acrescenta que deixou de sair com os amigos dela na noite anterior para se levantar cedo esta manhã para ir ter comigo (coisa que não conseguiu devido à constipação) e remata ainda dizendo que teve uma semana
cheia de trabalho e que o dia de hoje foi o
primeiro e único em que ela pôde finalmente descansar um pouco.
Permaneço em silêncio por alguns instantes. Fui apanhado em falso – ela não me dissera nada disto de manhã. Porém, isso não significa que seja mentira. E nem me passa pela cabeça duvidar da sua palavra, portanto, “Ainda bem que eu decidi ligar, porque assim isso fica esclarecido,” remato eu. E depois revelo que a razão porque estou desapontado por não nos termos encontrado se deve à
necessidade que eu tinha de estar com ela
em pessoa para encerrar o assunto da nossa separação. Porque há coisas que prefiro falar olhando
na cara das pessoas...
“O que eu te queria dizer, no fim disto tudo, é que é
lixado chegar à conclusão que esta relação só funcionou enquanto
eu estive empenhado, porque, a partir do momento em que eu baixei os braços,
tu não fizeste o mínimo esforço para segurar as coisas.”
Agora ela está
realmente zangada! “Nós moramos a
300 quilómetros um do outro!!! Eu não te conheço a ti e tu não me conheces a mim e
não há maneira de nos conhecermos um ao outro com toda esta distância entre nós!! Que querias tu que eu fizesse?! Desculpa, mas eu
não vou correr até ao
fim do mundo por
tua causa!”
Pois, creio que isso é
óbvio. Por esta altura do campeonato, já eu o tinha adivinhado. Seja como for, não estaremos a exagerar um bocado? “Espera lá!” digo-lhe eu, “Eu
nunca te pedi para correres até ao fim do mundo por minha causa! Aliás, eu
nunca te pedi
nada!” É sempre bom deixar estas coisas bem claras, só para prevenir. “O que estou a dizer é que gostaria de ter sentido alguma
vontade da tua parte em ver o que é que esta relação podia dar...”
“Temos 300 quilómetros a separar-nos!” rebate ela, “
Como é que nós podemos ter uma vida
em comum nestas condições?” “
Sei lá!” respondo, “Mas essa pergunta esteve presente na nossa relação
desde o início! E nós
nunca encontrámos resposta para ela!” E, caramba,
todos sabiam as regras do jogo desde o início e não foi isso que impediu ninguém de jogar!... Mas, se calhar, uns sabiam as regras
melhor que os outros...
“Afinal, agora percebo porque é que tu, desde o início, puseste em dúvida a
longevidade do meu sentimento por ti,” disparo eu. “No fundo, a longevidade do
teu sentimento é que era de duvidar, mas estavas a projectar em mim o
teu carácter.” Quem não conhece o caso clássico do adúltero incorrigível que vive no medo paranóico de ser, ele próprio, encornado? No fundo, ele apenas projecta nos outros o
seu carácter e o
seu modo de agir e, por essa razão, reage como se todos à sua volta funcionassem como ele. “Se calhar,” acrescento, “
eu é que devia ter posto em causa a longevidade do
teu sentimento.” Como é natural, ela não fica
nada contente (e
quem ficaria, depois de ter sido chamado de
volúvel?). Diz que eu não a conheço o suficiente nem tenho o
direito de tirar conclusões acerca da sua personalidade ou dos seus sentimentos, que não sei nada do que se passa na sua cabeça nem no seu coração e que não faço a mínima ideia do quanto lhe custou terminar a nossa relação. E acrescenta: “Posso até não saber bem aquilo que quero, mas, se há coisa que sempre soube na minha vida, é aquilo que
não quero.”
Ouch! Essa doeu! Mas, e daí, creio que a mereci, pela
provocação. Admito que ela tenha razão quando diz que eu não a conheço há tempo suficiente. Contudo, e contrariamente a ela, eu não sou de opinião que esse facto por si só me retire o
direito de formar apreciações acerca do seu carácter. Enquanto reinar o
livre arbítrio, posso opinar o que muito bem entender! Aquilo que aqui pode ser discutido é, não o meu
direito a uma opinião, mas sim a
validade dessa opinião. Contudo, nem mesmo o facto de não a conhecer há tempo suficiente significa obrigatoriamente que a minha opinião esteja errada. Mas, seja de que modo for, não me interessa entrar em discussão com ela. Estou magoado, provoquei-a e recebi o troco – e deixemos as coisas por aqui. De qualquer maneira, já tenho aquilo que queria, as
respostas que procurava. Não vale a pena provocar o confronto e enervarmo-nos, para acabarmos realmente zangados, destruindo o respeito que temos um pelo outro. Portanto, “não te incomodo mais,” digo-lhe. E despeço-me.
Ao pousar o auscultador do telefone, sinto-me estranhamente leve e aliviado, mas, ao mesmo tempo, cheio de uma
raiva latente. Por ter sido eu
o único a assumir esta relação desde o início. Sinto que fiz papel de otário. Otário não por ter assumido a relação, mas
otário por ter compactuado com o facto dela não querer assumir. Sobre esse ponto, ela nunca me mentiu e devo dar-lhe crédito por isso. Mas devia tê-la mandado passear logo à partida, ah, isso devia – “Então, até para o ano! Cá nos veremos no Andanças outra vez!” Beijinho, beijinho e tchauzinho. Afinal, se era para não assumir, mais valia termos encarado a relação como aquilo que, no fundo, era – uma
Curtição de Verão –, em vez de andarmos para aqui enganados durante quase dois meses.
... Mas estou a ser
injusto. No fim de contas, esta relação foi um grande equívoco para
ambos. Porque eu acredito que, tal como eu, também
ela queria mais desta relação – nenhum de nós se meteu nisto numa de
curtição (embora o pudéssemos ter feito). Infelizmente, havia muitas coisas contra nós. E estou em crer que, caso não houvesse distância a separar-nos, ter-nos-ia bastado
uma ou duas semanas para chegarmos à conclusão que, apesar dos interesses em comum, somos demasiado
diferentes para que uma relação amorosa pudesse resultar. Enfim, “o que tem de ser tem muita força,” não é o que se costuma dizer?
Contudo e, pela minha parte, não estou arrependido de ter vivido esta relação. Estou até
orgulhoso de mim mesmo e do papel que desempenhei em todo o caso. Por ter revelado uma enorme
clareza de espírito a analisar objectivamente a relação e uns
tomates do caraças ao terminá-la antes de me enterrar mais nela, apesar de gostar da rapariga. Se sofri?
Ainda sofro! Mas poderia ter sido
muito pior, caso me tivesse deixado conduzir cegamente pelo Coração e teimasse em persistir no engano. Conclusão: a Razão ao serviço do Sentimento só produz resultados
benéficos.
No final, fica-me a recordação de quase dois meses
maravilhosos. Fica-me a memória de uma cabeleira fulva e um profundo olhar azul que, por breves instantes, mantive entre as mãos. Ficam-me momentos como aquele em que, sentado na calçada duma esquina da Duque de Ávila com a Rua Marquês Sá da Bandeira, com o telemóvel colado ao ouvido e ela expectante do outro lado, eu desembrulhei o magnífico desenho que ela fizera especialmente para mim na noite anterior. Ou como aquele final de tarde no Porto em que, dentro do carro, nos abraçámos ao som de “Fico Assim Sem Você,” da Adriana Calcanhotto, instantes antes de eu a deixar para regressar a Lisboa. Porque são esses momentos de
pura poesia que interessa guardar. E são tudo o que se leva da Vida.