sábado, outubro 30, 2004

“BEFORE SUNSET – ATÉ AO ANOITECER”

Pelo segundo dia consecutivo, assisto ao filme “Before Sunset,” de Richard Linklater. Ontem, após um jantar e cinema na companhia da minha amiga Evita, do Ti e da sua esposa Fifi, vi-me constrangido a abandonar a sala de projecção antes do final do filme, depois da Evita ter recebido a triste notícia da morte do seu cão na Costa do Marfim, no dia anterior ao seu regresso à dita terra. Apesar dos meus companheiros confessarem algum alívio por abandonar a sala de cinema prematuramente, eu tive realmente pena de perder a conclusão do filme. Contudo, não podia ser de outra maneira: a Evita estava inconsolável com a morte do seu Bolinha (paz à sua pequena alma canina!) e eu, como seu melhor amigo, não podia ignorar a sua dor e deixá-la desamparada. Mas regresso hoje ao cinema, para ver a conclusão que ontem me fugiu.

É impossível falar de “Before Sunset” sem referir “Before Sunrise,” do mesmo realizador. Filme de 1995, conta a história de Céline (a encantadora Julie Delpy) e Jesse (Ethan Hawke), dois jovens que se conhecem numa viagem de comboio na Europa, ela com destino a Paris e ele de regresso aos Estados Unidos. Chegados a Viena (da Áustria), decidem desembarcar para “check out the town,” antes de seguirem cada qual o seu caminho no dia seguinte. Assim, os dois passam a noite a passear pela cidade, conversando sobre tudo e sobre nada e, no fundo, apaixonando-se um pelo outro. Na manhã seguinte, no momento de despedida, ao invés de trocarem telefones ou moradas, decidem voltar a encontrar-se naquele mesmo lugar daí a seis meses. “Au revoir.The end.



Entretanto, passam nove anos. Tanto no cinema, como na vida real. Em “Before Sunset,” Jesse é agora um escritor famoso, de passagem por Paris para promover o seu livro, que conta a história de dois jovens que se conhecem num comboio, passam a noite juntos em Viena e se separam no dia seguinte com a promessa de se reencontrar daí a seis meses – a sua história, no fundo. E é no decorrer de uma pequena conferência de imprensa na livraria Shakespeare & Co., horas antes de apanhar o avião de regresso aos Estados Unidos, que Jesse reencontra Céline. Juntos, abandonam a livraria, para um café e dois dedos de conversa – que se estende pelo filme inteiro.

Aqui e ali, na sala de cinema, uma ou outra pessoa dormita. E aqueles que não dormem, estão com certeza a apanhar uma seca monumental. Afinal, este não é um filme romântico convencional. Tal como no primeiro filme, os protagonistas gastam o tempo todo a conversar, sobre tudo e sobre nada. Banalidades, filosofias, curiosidades, revelações. Confissões. São 80 minutos só de conversa. Nada de sexo. Nem um beijo para amostra.

No entanto, e ao contrário do pessoal que enche a sala, cuja opinião não deve diferir muito da dos meus companheiros de ontem, eu adoro o filme. Vibro do início ao fim e precisamente por ser um filme romântico que não se guia pelas gastas e previsíveis fórmulas convencionais do género. Além disso, é um filme que vai de encontro à minha ideia de romantismo. Vi uma vez, não sei onde, um pai aconselhar ao seu filho que se casasse com uma mulher com quem sentisse prazer em conversar. Dizia o cota sabedor que “o tempo leva tudo: a beleza, o cabelo, a tesão. E quando tiverem perdido tudo e forem ambos velhos caquéticos com os pés para a cova, é bom que tenham prazer em conversar um com o outro, pois é só isso que vos vai restar.” E não há dúvida que a Céline e o Jesse gostam de conversar um com o outro.

Conselho do Jacaré: a não perder, mas apenas por espíritos elevados que procuram e desejam algo mais das suas relações amorosas e da vida. Os outros, por favor não gastem dinheiro com este filme quando podem ir ver outras coisas mais de acordo com o seu limitado nível de sensibilidade.

+ MASCARADAS

“Então e tu,” pergunta o Sky, “estás mascarado à Gendô, com essa barbinha?” O Ballistic, a quem é dirigida a pergunta, nega com veemência. Não o mostra, mas eu percebo imediatamente que o gajo ficou picado. Sem se aperceber disso, o Sky tocou num ponto sensível. Convém esclarecer desde já, para quem não percebe nada disto, que o Gendô (ou Ikari Gendô) é uma das personagens principais da série “Evangelion,” uma das mais famosas obras de referência de manga e anime (Banda Desenhada e Animação japonesas) e, coincidentemente, um dos maiores objectos de culto do Ballistic. Ou seja, em boa verdade, e por muito que o Ballistic o tente negar, todos sabemos que não é por acaso que ele tem aquele corte de barba. Todos sabemos, mas calamos. Excepto o Sky, que também tem uma grande boca e pouca sensibilidade, pois devia saber que não se fazem perguntas destas a fanáticos (oops! Desculpa, Ballistic, não era isto que eu queria dizer. Eu queria dizer obcecado. Oops!...).

Enquanto nos passeamos pela exposição de Banda Desenhada da Amadora, o Ballistic ainda vai a remoer no assunto: “Mascarado à Gendô! Pfff!” Eu rio-me: “Tem calma, Ballistic. A verdade é que o Sky até tem um bocado de razão. Tu estás mesmo mascarado à Gendô, com essa barbinha.” E acrescento, antes que o gajo se chateie também comigo: “Mas não te preocupes, pá, que não és o único. Aliás, olha à tua volta: toda a gente está mascarada!” Ele não percebe onde quero chegar. “Olha bem para mim. Porque é que tu achas que eu ando de gabardina preta, pá? Isto é influência do Matrix. No fundo, eu estou mascarado à Matrix, pá! Tal como aquele metaleiro ali, todo de preto e gabardina até aos pés. Matrix, sem dúvida. E ali o casalinho de góticos? São vampiros, vê-se logo.” O Ballistic ri-se. “E olha ali aqueles três gajos...” Agora o meu amigo está baralhado: “Mas esses gajos não estão mascarados de nada...” “Aí é que te enganas!” replico eu, “Olha lá bem para eles... Não é óbvio? Estão mascarados de nerds!” Gargalhadas. “E aquelas pitinhas ali ao fundo?” pergunto eu. Desta vez o Ballistic não se deixa ficar: “Estão mascaradas de betas!” É só rir!

Tenho é pena de só agora me ter apercebido disto! Caso contrário, ter-me-ia juntado ao grupo dos cosplayers! Porque, caramba, se é para andar mascarado, mais vale assumi-lo e fazê-lo como deve ser! Por isso, já decidi: o Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora do próximo ano pode certamente contar com mais um cosplayer – o Jacaré Voador! Até já sei qual vai ser a personagem que vou assumir... Esqueçam lá os mangas e os animes! O Jacaré vai encarnar um gajo tão bad motherfucker que é capaz de mandar um pontapé nos tomates do Songoku e deixá-lo a contorcer-se de agonia no chão, a guinchar como uma menina! Cosplayers, preparem-se, que vem aí o Marshal Law!!!



E depois logo vos mostro, ó cambada de exibicionistas frouxos, como se estabelece contacto com a multidão... na base da porrada! Fear and Loathing!

Resta-me encerrar (finalmente!) este assunto das mascaradas, não sem antes deixar uma sugestão ao meu nobre leitor. Caro amigo, assim que tiver uma oportunidade, ligue-se à Internet, aceda ao motor de busca da sua preferência e digite “cosplay” na caixa de procura. Depois, divirta-se a dar uma vista de olhos nos sites que lhe aparecerem à frente. Garanto-lhe uns bons momentos de sonoras gargalhadas. Muito nos rimos o Ballistic e eu madrugada adentro, a gozar com as tristes figuras de certas criaturas mais adiposas, a tentarem fazer-se passar por esbeltas personagens de anime. Há pessoas que não têm noção nenhuma do ridículo... Mas ainda bem, caso contrário o mundo seria bem mais aborrecido para os outros.

MASCARADAS

Ao chegar ao Festival de Banda Desenhada da Amadora, acompanhado dos meus amigos Ballistic e mARco, encontro de imediato caras conhecidas: o Sky (vestido de preto da cabeça aos pés, como é usual nestas ocasiões, segundo o mARco) e o cunhinha – que, por fim, conheço pessoalmente e que, tal como eu esperava, é um tipo porreiro (cabeçudo, mas porreiro).

O Sky é todo entusiasmo e agitação, a pairar em volta de uma comitiva deveras peculiar, reunida em magote à entrada do recinto. É uma cambada de gente estranhamente vestida, com trapos de cortes esquisitos e cores berrantes que não combinam, e exibindo cabeleiras espetadas multicores, dignas de qualquer bom Super Guerreiro do Espaço. E de facto, ao olhar com maior atenção, apercebo-me (não sem algum horror) que reconheço algumas daquelas estranhas personagens... da televisão (ou do monitor)! Isto só pode significar uma coisa: hoje é dia de cosplay.

O ingénuo leitor não sabe o que é cosplay? No fundo, é uma grande mascarada. O Sky mostra-se ofendido: “Mascarada?! Isto não é nenhuma mascarada! Isto é COSPLAY, pá!...” (Eu e a minha grande boca de Jacaré! Mal cheguei e já estou a ofender as pobres pessoas à minha volta...)

O cosplay é uma actividade praticada por devotos fãs (otakus, sem qualquer dúvida), que desenham e criam as próprias fantasias, para encarnar e representar as suas personagens favoritas de manga, anime e jogos de computador. Cosplay é um acrónimo de “costume play,” ou seja, e como o próprio nome indica, costume = vestimenta e play = representação ou actuação. Este é, obviamente, o significado erudito. Porque cosplay também pode ser, muito literalmente, costume = disfarce de fantasia e play = brincadeira. Ou seja, e por outras palavras, palhaçada. Deixo ao leitor a escolha da interpretação que mais lhe aprouver. Eu cá já fiz a minha.

Mas estou a ser injusto. Porque o cosplay nem sequer é digno de ser classificado como palhaçada. É que os palhaços, pelo menos, esforçam-se para entreter o público. O que não acontece com os cosplayers. O mARco diz-me que, de vez em quando, eles encenam umas “lutazinhas bué ridículas” entre eles para animar a malta, mas, pelo que me é dado observar, não vejo uma única destas criaturas a esforçar-se minimamente para estabelecer o mais pequeno contacto com a multidão espectadora (e expectante). Limitam-se a andar no meio dela, alheios a tudo e a todos – excepto uns aos outros, claro. Calculo que não lhes interesse estabelecer qualquer contacto com a chusma ignorante que encara o cosplay como uma mera mascarada. Contudo, e infelizmente para eles, é exactamente e apenas isso que o cosplay é para o espectador comum.

Eu até compreendo a atracção e o entusiasmo que um gajo, ainda que não sendo pago para isso, possa sentir por vestir uma armadura de esponja mal pintada, enfiar na tola uma peruca reles de cabelo lilás todo espetado e carregar ao ombro uma espada de plástico muita fatela. A sério que compreendo. O que não percebo é que depois esse gajo vá passear no meio de uma multidão que se esforça por ignorar! Afinal, um gajo mascara-se para ser visto, ou não? O mascarado deve ao seu público, pois é a multidão espectadora quem valida o seu trabalho. Por outras palavras, um mascarado sem público não é nada. É apenas um gajo com uma tara marada.

Que me venham dizer que os cosplayers fazem isto por simples gozo pessoal. Muito bem. Nesse caso, se se estão a cagar para a assistência, se fazem isto para se divertirem entre eles, não faz sentido que saiam para a rua. Porque esta cena é só deles. E só para eles. Assim sendo, é melhor ficarem em casa. Eu, quando me masturbo, também é na intimidade do lar.

AMADORA BD 2004



Visito o Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora, na sua 15.ª edição, desta feita instalado na novíssima Estação de Metro da Amadora Este (Falagueira). Impressões gerais: o novo local é mais amplo que a atrofiada Escola Intercultural, local onde decorreram as últimas três edições do Festival, o que é uma boa notícia. A má notícia é que o espaço está retalhado em pedaços estreitos e disformes, entalados à força uns nos outros, num conjunto confuso, claustrofóbico e labiríntico. Está visto que foi um arquitecto da tanga que tratou do assunto...

Em termos de conteúdo, é o mesmo de sempre: exposições temáticas, exposições individuais (de autores nacionais e estrangeiros), exibição dos trabalhos referentes ao concurso de Banda Desenhada e, claro, área comercial. A par disto, decorrem também conferências, sessões de autógrafos, workshops e animações. Há sempre muito a decorrer no FIBDA!

Infelizmente, a minha paciência já não é o que era e não me permite passar horas e horas perdidas em deslumbramento, a ler quase cada prancha individualmente (!), como costumava fazer quando era puto. Também já fiz alguma coisa (e vi muito mais!) na área e já não me impressiono facilmente com aquilo que vejo actualmente. É o que faz a idade. Outra consequência é não aguentar estar muito tempo fechado num ambiente atravancado e barulhento sem começar a dar em doido. No entanto, faço questão de ver sempre a exposição de fio a pavio.

Recomendações? As exposições individuais de André Carrilho (autor do cartaz deste ano e excelente ilustrador e caricaturista, cujo trabalho pode ser apreciado em www.andrecarrilho.com), do servo-croata Gradimir Smudja e do americano Seth Fisher valem bem a pena, assim como a de BD Argentina (que inclui nomes incontornáveis como Alberto Breccia, Eduardo Risso e, claro, o genial e inultrapassável Quino – todos eles grandes mestres no domínio do preto e branco) e, a nível de curiosidade (muito embora não revele nenhuma grande surpresa), a grande exposição temática de 100 BDs do Século XX, com especial destaque para as instalações, adereços e apresentação geral desta exposição em particular, assim como de todo o festival.

Pontos baixos? A exposição Colectivo Serra da Estrela (mas quem é que ainda acha piada à BD histórica feita nestes moldes tão clássicos e enfadonhos?! Que seca de morte!) e também a de Luís Louro (a exposição interdita a menores de 18 deste ano – todos os anos há uma – com direito a segurança à porta e tudo, a barrar a entrada às mentes mais jovens e impolutas). Infelizmente, desde a “Alice” que o Louro não faz nada de jeito. Talvez tenha a ver com as suas recentes parcerias com o Rui Zink como argumentista... Não sei, mas também não quero entrar por aí. O certo é que este seu último álbum de ilustrações comentadas (por grandes nomes da nossa praça) é irrefutavelmente fraco. Não traz nada de novo e quanto às ilustrações, enfim, um gajo até acha piada às primeiras duas ou três, mas depois... é mais do mesmo. A evitar. E é pena – eu que até gosto tanto de pornografia...

Contudo, e no geral, o saldo do festival é positivo. Nem que seja apenas por me inspirar, como sempre, uma imensa e indomável vontade de voltar para casa a correr, para desenhar até ter cãibras nos dedos. É isto, sem dúvida, o que mais gosto nas exposições de Banda Desenhada e aquilo que me faz voltar todos os anos e sempre.

sábado, outubro 23, 2004

“CONFISSÕES DAS MULHERES DE 30”

“Os 30 anos são a idade do agora ou nunca,” diz Maria Henrique. “É agora ou nunca que eu vou ter sucesso profissional, é agora ou nunca que vou ter o casamento perfeito, é agora ou nunca que vou ter filhos. E quero tudo a que tenho direito! Se tiver sucesso profissional, mas não tiver marido, serei infeliz. Se tiver marido, mas não tiver sucesso profissional, serei infeliz. Ah, mas se tiver sucesso profissional e marido... provavelmente também serei infeliz!...”



Assisto à peça “Confissões das Mulheres de 30,” em exibição no Auditório Armando Cortez, na Casa do Artista. No palco, Maria Henrique, Fernanda Serrano (bela grávida) e Margarida Marinho (já com 41 anos, mas uma excelente febra!) discorrem sobre os seus amores e desamores, os seus sonhos, as suas ilusões e desilusões, as suas inseguranças, as suas raivas e neuroses, as suas preocupações, as suas incongruências, as suas insatisfações, as suas tristezas e alegrias. Em suma, falam sobre a Vida. A Vida vista pelo ponto de vista feminino, claro está. Condimentado com muito sentido de humor e ironia, a que não é estranha a consciência do papel patético e absurdo que, não raras vezes, as mulheres desempenham no surreal teatro da vida. Mas estas três senhoras sabem que ninguém está livre de fazer figuras tristes e tomam a única atitude inteligente face a este facto: assumem os seus actos e riem-se de si mesmas. Com muita sinceridade, diga-se de passagem. E excelente resultado.

“Ser bonita é muito difícil,” confessa Fernanda Serrano. “Quando uma mulher bonita é rejeitada por um homem, pensa que isso aconteceu porque, apesar da beleza, no fundo, ela é uma pessoa terrível. E quando não é rejeitada, ela pensa que o homem só gosta dela pela beleza, porque, no fundo, ela é uma pessoa terrível.”

Há que amar a mulher, pois é um ser tão belo, único e extraordinário quanto complexo. E é precisamente com essa ideia que uma pessoa abandona o teatro. Não há tratados ou fórmulas mágicas que expliquem a combinação – tantas vezes contraditória – que é a mulher. A sua beleza advém precisamente do facto dela ser complexa, contraditória (o que não significa que seja desprovida de lógica) e, quando menos se espera, absolutamente imprevisível. E só a compreende (e ama) verdadeiramente aquele que percebe isto.

“Então e o homem bom de cama?” E elas riem-se, como se essa criatura fosse uma perfeita quimera, após terem classificado os diferentes tipos de homens consoante as suas prestações na cama. “Não, agora a sério... O homem bom de cama são todos os homens que vieram ver esta peça!” Muitas palmas entre a assistência. E, não obstante a evidente nota bajuladora da afirmação, concordo. Porque o “homem bom de cama” é necessariamente um gajo que compreende (ou procura compreender) a mulher, ou seja, que se interessa genuinamente pelo que ela tem a dizer. E só um gajo desses quereria assistir a esta peça.

Destaque para uma citação final, um verdadeiro pensamento de Jacaré (e, curiosamente, uma opinião que eu próprio já venho proclamando há uns tempos): “Ter 30 anos é uma posição de abrangência estratégica: pode-se namorar homens de 20, 30, 50 anos... sem que ninguém lhe chame tarada.” Brindo a isso!... Embora, pessoalmente, não tenha nada contra as taradas, note-se bem.

O CROMO DO TANGO

No início da semana, apesar dos antibióticos que tenho andado a tomar, o furo que tenho na barriga, atravessado pelo cateter urinário, infectou. No hospital Egas Moniz, onde agora vou semanalmente para mudar o penso, a enfermeira Emília (a tal dos instrumentos de tortura) usou nitrato de prata para me cauterizar a carne e parar a infecção. Estava a carne já tão purulenta (segundo as próprias palavras da enfermeira), que ela queimou e queimou e eu não senti nada. A dor só veio depois. Passei uma semana dobrado em dois, com a barriga em carne viva.

Apesar de tudo, estou hoje de regresso à dança e à Academia Musical 1.º de Junho de 1893 (no Lumiar, Lisboa) – local onde ensinei Danças de Salão este ano até Julho passado – para participar em workshops de Tango Argentino e de Milonga, ministrados pelos professores Gladys e Oscar e os seus alunos Liliana e Fábio, grupo do Porto que deu aulas na edição deste ano do Andanças.

Durante o workshop, divido-me para dançar com a Vi e a Porto (colegas das aulas de Danças de Salão) e a Vânia, uma antiga colega, rapariga muito bonita e transbordante de sensualidade (e que, ao que parece, deixou o Kwenda pelo beicinho – tough luck, Douradinha!). A azáfama é tão intensa que me esqueço totalmente das minhas dores. Contudo, no intuito de evitar pares fixos e uma vez que são mais as senhoras que os homens (so what else is new?), a Gladys baralha e torna a dar, pondo-me a dançar com uma senhora muito divertida, que está a aprender tango pela primeira vez. “Que sorte!” exclama ela, “Já estive a deitar um olho para os dançarinos avançados e acho que você é um dos melhores! E, ainda por cima, é um rapazinho todo jeitoso... Que sorte a minha!” Olha-me p’a cota, hã?! E ela continua, clamando alto e bom som para o lado oposto do salão: “Ó mana! Vê só com quem é que eu vou dançar! Que grande sorte, hã?”

Mas, na verdade, a sorte é também minha, pois a dita senhora revela muita agilidade na pista de dança, deixando-se conduzir com tal leveza que consigo guiá-la facilmente em passos que ela nem sequer conhece. No final, ela está feliz: “Ah, foi muito bom! Muito obrigado! Até aprendi passos novos e tudo!” Eu sorrio largamente e retribuo o cumprimento. O Jacaré é um cavalheiro.

Mais uma vez, os professores confirmam o excelente método de ensino de que deram mostras em Carvalhais, durante o Andanças, e a prova é que os workshops decorrem muitíssimo bem. Pela minha parte, fico feliz ao descobrir que os professores ainda se lembram de mim. A comprová-lo, está aquilo que me confidencia em surdina o próprio Oscar, depois de me corrigir alguns detalhes subtis na postura: “tenho que exigir mais de ti do que dos outros,” revelando que me considera num patamar diferente dos demais (como já o tinha feito durante o Andanças, quando me convidou a integrar o seu grupo de Tango). O Jacaré é um cromo.

Mas não é apenas o Oscar que se lembra de mim. O primeiro a cumprimentar-me, assim que entrei no salão acompanhado da Vi e da Porto, foi o Fábio. Como não podia deixar de ser. Apesar de namorar a Liliana, a sua mui bela e simpática partenaire, senhora de um voluptuoso corpo de pecado que, seguramente, foi esculpido pelos Deuses, é a mim que este gajo lança insistentes olhares de profunda lascívia, como aconteceu durante todo o Andanças, conforme testemunhado (entre sonoras gargalhadas) não só por toda a party do Jacaré, como também pela própria Ruiva, que sentiu da parte do rapaz uma certa acrimónia para com ela. Pois, pudera! Afinal, era ela quem andava a comer o bonzão a quem o tipo aparentemente queria ferrar o dente! No entanto, não posso deixar de o compreender, pois o gajo revela ter muito bom gosto. Para além disso, o seu interesse coloca-me em competição ao nível da bela Liliana, a gaja boa e grossa, o que é um enorme elogio para mim. No fundo, isto só prova que aqui o Jacaré é tão belo pedaço de homem que não deixa ninguém indiferente. O Jacaré é um super cromo!

terça-feira, outubro 19, 2004

QUEM SAI AOS SEUS

Hoje o meu irmão completa 24 anos de existência. Está a ficar velho, o gajo, com quase um quarto de século às costas. Parafraseando o meu pai, “já vai sendo tempo dele começar a ganhar juízo e ir-se habituando a usar camisa” (não confundir com camisinha), em vez de andar sempre vestido com as t-shirts (rascas) da Meia Maratona de Lisboa. Em defesa do meu irmão, eu replico que ele pode muito bem vestir fato, camisa e gravata quando tiver um emprego que assim o exija e continuar a usar as t-shirts da Maratona nos seus dias de folga.

Mas para o meu pai, isso não cola. Ele defende que um homem sério e íntegro é sempre o mesmo, dentro e fora do emprego. Esses gajos que mudam de pele consoante o ambiente são, claramente, pessoas falsas – inadaptados do sistema que se recusam a aceitar as normas impostas pela sociedade e que, por necessidades pecuniárias (pois um gajo tem de meter comida na mesa, não é?), recorrem a máscaras para fingirem ser aquilo que se escusam a ser. Se o meu pai mandasse (e ainda bem que não manda!), usaríamos todos fato e gravata. E andaríamos todos de barba feita e cabelo cortado. Porque é isso que faz um homem sério.

Este modo de encarar o mundo irrita-me sobremaneira (especialmente vindo do meu próprio pai), porque acredito que o valor de uma pessoa, mais que pelo aspecto exterior, advém da qualidade dos seus princípios morais e éticos e da sua fidelidade a eles (ou seja, não basta apenas ter princípios, é acima de tudo necessário segui-los). E isso é independente da aparência exterior.

Obviamente, esta disparidade de opiniões é causa de constante atrito entre nós. Felizmente, nestas questões, aprendi a ignorar o meu pai e deixá-lo arengar sozinho, caso contrário, já nos teríamos morto um ao outro há muito tempo. Mas ele não perde uma oportunidade para chatear um gajo e esta noite, durante o jantar de aniversário do meu irmão, com a família reunida, ele volta à carga: “Então, pá, quando é que tu me cortas esse cabelo e fazes essa barba?” Do outro extremo da mesa, volto-me calmamente na sua direcção e, com um sorriso nos lábios, pergunto-lhe: “Ouve lá, eu costumo emitir opiniões sobre o teu cabelo e barba?” “Não,” responde ele. “Então não te admito que faças qualquer tipo de comentário sobre o meu cabelo e barba.” Pimbas! Toma lá! 1-0!

Ele está atónito. “Não me admites?! Quem és tu para admitir ou não? Mas nós agora já estamos ao mesmo nível ou quê?” Eu volto a sorrir: “Então, espera só até chegar a altura de ser eu a tomar conta de ti...” Tungas! Vai buscá-la! 2-0! E ainda tem que gramar com a risota geral na mesa e a minha mãe a dizer que “cada um colhe aquilo que semeia...”

“Estava bem arranjado se fosses tu a tomar conta de mim!” Não o poupo: “Se calhar, eu deveria dizer o mesmo.” Tracatumbas! Sem hipótese! 3-0! Nas calmas e a sorrir, volto a pôr a mesa inteira a rir e ele não tem outro remédio senão calar-se e bufar sozinho. Ainda o ouço resmungar para a minha mãe que, actualmente, aquilo que se colhe é bem diferente daquilo que se semeia. Por outras palavras, creio que o que ele quer dizer é que os filhos de hoje são uns ingratos, que não dão valor nenhum ao que os pais fazem por eles.

O meu pai anda muito equivocado. O seu grande problema é que já se esqueceu dos seus tempos de juventude. Caso contrário, lembrar-se-ia que também ele só fez o que lhe deu na real gana, mesmo contra a vontade do seu velho. Não por uma questão de ingratidão ou capricho. Mas porque acreditava naquilo que estava a fazer.

Ele deveria estar orgulhoso de mim. Porque, aparentemente, “quem sai aos seus, não degenera.”

sábado, outubro 16, 2004

CASAMENTO E SALSA

Hoje levanto-me cedo. E, para meu alívio, sinto-me bem de saúde. Ontem acordei com uma dor aguda junto à glande, como se tivesse um calhau rugoso enfiado pela pila acima. Creio que aquilo que obstrui a minha uretra se deslocou. “Boas notícias,” pensei eu, “Devo estar quase desentupido.” Apesar de tudo, o meu dia foi passado com bastantes dores e também alguma febre. Hoje, apesar de me doerem um bocado os órgãos genitais, sinto-me bem e não tenho febre. Fosse como fosse, e ainda que estivesse às portas da Morte, não podia faltar a esta chamada.

Afinal, hoje casa-se o meu amigo Ti. É dia de festa e alegria! Especialmente porque a Elite vai estar de novo reunida! Desde que nos conhecemos, há mais de seis anos atrás, que a Evita, o Nino, o Ti e eu nos tornámos bons e inseparáveis amigos. E, apesar de cada um de nós ter seguido diferentes percursos de vida, a Elite continua a reunir-se regularmente para grandes mariscadas e momentos de excelente convívio. E esta ocasião é um perfeito exemplo disso, já que a Evita veio expressamente da Costa do Marfim, onde reside actualmente com o noivo, para o casamento.

O evento é o mesmo de sempre: o calvário da missa e de carradas intermináveis de fotografias só é suportável pela perspectiva da paparoca. Contudo, não estou nada satisfeito com a companhia que me calhou em sorte na mesa do almoço. O Nino e eu aqui tão belos e solteiros e logo havíamos de ficar encalhados nesta mesa cheia de casalinhos quando, mesmo na mesa ao lado, estão três grossas febras desacompanhadas! Não há direito! Alguém vai pagar por isto! O que nos vale é a companhia refrescante da Evita, senão estávamos agora bem agarrados ao pau!...

Após o almoço há animação: Salsa! Um grupo de dançarinos executa uma exibição, seguida de workshop. Assim que o professor solicita participantes para a contradança, apresento-me de imediato, arrastando a Evita pelo braço. Formando uma roda, os dançarinos seguem as instruções do professor, repetindo os passos aprendidos anteriormente. E, como não podia deixar de ser, não há rapariga que me passe pelas unhas que não pergunte se eu danço – é o domínio! Uma das alunas de Salsa vai mais longe: “Tu estavas no Andanças deste ano, não estavas?” Eu confirmo. E sorrio. Não me lembro dela, mas, pelos vistos, ela lembra-se muito bem de mim.

Entretanto, aproveito para meter conversa com as três grossas febras da mesa vizinha, à medida que me vão passando pelas mãos durante a dança. A rapariga das calças pretas bem justas e farto peito que parece convidar a mergulhar naquela opulência carnal exibe uma cara de poucos amigos e reage cheia de indiferença às minhas investidas. A sua amiga do vestido com as costas tão descaídas que dá para ver a tanguinha está muito mais receptiva, mas tem ar de vaca e dança mal. Quanto à terceira menina, jackpot!, tem um lindo sorriso e deixa-se conduzir muito bem. Enverga um elegante vestido rosa, que lhe salienta as graciosas curvas da anca e, curiosamente, é muito parecida com a noiva. Pergunto-lhe se são irmãs e ela confirma, mostrando-se extremamente simpática. Conversamos um pouco e, mais tarde, troco um demorado e significativo olhar com ela, que me cumprimenta sorridentemente do outro lado do salão. E eu retribuo o cumprimento.

Ao comentar o assunto com o irmão mais novo do noivo, o meu grande amigo Ballistic, ele avisa-me que a doce menina “tem dono.” “Se realmente tem dono,” replico eu, “onde diabos anda esse gajo, que não apareceu no casamento da cunhada?...” O Ballistic não me sabe responder, nem me parece muito interessado no assunto – as suas atenções estão centradas numa jovem prima gótica, mui bela e dramática. De qualquer modo, pouco antes de abandonar as festividades, no momento das despedidas, aproveito para elogiar à noiva a beleza da sua jovem irmã. Ela mostra-se imensamente agradada e o Ti, aproveitando de imediato a deixa, tece longos elogios acerca da minha pessoa, enquanto me pisca o olho repetidas vezes. Mas a noiva permanece silenciosa sobre o assunto, o que me leva a dar crédito às palavras do Ballistic. Seja como for, o facto é que a primeira impressão que dei à menina de rosa foi altamente positiva. E, de facto, o noivo comenta comigo mais tarde que as grossas febras ficaram com a ideia que a Evita e eu somos namorados. Eu rio-me com gosto. Isto acontece-nos frequentemente. A Evita e eu partilhamos uma profunda amizade e intimidade de anos, que facilmente é confundida por algo mais por quem nos observa de fora. Muito sinceramente, não me incomoda nada que isto aconteça, pois, sendo a Evita uma bela e maravilhosa rapariga, quaisquer especulações acerca de uma relação entre nós os dois apenas beneficia a minha reputação. Além disso, o facto das grossas febras terem perdido tempo com estas considerações, revela que o assunto da minha disponibilidade amorosa as interesse.

Mas é natural que assim seja. Porque, afinal, pertenço à Elite e este grupo é, de longe, o mais elegante e distinto de todo o casório. Ou não fosse constituído por alguns dos meus melhores amigos. E eu.

quarta-feira, outubro 13, 2004

LET THE GAMES BEGIN

Com o terminar da sua mais recente relação e o encerrar de mais um capítulo amoroso, o Jacaré Voador, novamente livre e amorosamente desimpedido, anuncia oficialmente o seu regresso ao sempre excitante e promissor Mundo dos Solteiros! O filho pródigo a casa retorna! Desejemos-lhe, portanto, as mais sinceras e calorosas boas-vindas!

Que as mais belas meninas por esse mundo afora suspirem de ansiedade e alegria pela recém adquirida disponibilidade do nobre réptil, pois o lugar mais alto do seu coração está agora vago e pronto a ser ocupado por nova inquilina, alguém que se revele merecedora dessa elevada honra! Deste modo, e no sentido de afastar atropelos desnecessários e alguma violência evitável na comunidade feminina interessada, a excelsa criatura decidiu por bem realizar um rigoroso concurso ao almejado lugar.

O concurso consiste em quatro partes distintas: a Candidatura, o Primeiro Contacto, o Contacto Aprofundado e a Conclusão. Toda e qualquer menina interessada em preencher a vaga no coração do nosso brioso Jacaré, deve enviar a sua Carta de Apresentação para jacarevoador@gmail.com, anexando o seu currículo e (no mínimo) duas fotos de corpo inteiro, sendo uma delas em biquini. Em todas as fotos, a cara da candidata deve ser bem visível. Este procedimento corresponde à primeira parte do concurso: a Candidatura.

Após a recepção da candidatura, dá-se início à segunda parte do concurso, apelidada de Primeiro Contacto, que consiste no encontro físico entre as partes envolvidas e se divide em duas fases. A primeira fase, de Apreciação Individual, consiste num encontro preliminar (com a duração mínima de meia-hora), onde a candidata terá oportunidade de conhecer o ilustre Jacaré ao vivo (tenham calma, minhas senhoras!) e provar no terreno as suas capacidades. Do resultado desse encontro será feita a primeira selecção, que decidirá se a candidata passa à segunda fase, de Apreciação Social. Em caso afirmativo, realizar-se-ão outros dois encontros, desta feita, em grupo: um com os amigos da candidata e outro com os amigos do Jacaré. Após esta fase, nova selecção determinará quais as candidatas que ganharam o direito de passar à terceira parte do concurso.

A fase de Contacto Aprofundado consiste numa série de encontros (tantos quanto necessário), a sós ou em grupo, no sentido de aprofundar o conhecimento e o relacionamento entre as partes interessadas. A quarta e última parte do concurso consiste na Conclusão, onde o distinto Jacaré tomará a sua decisão final em relação a cada uma das candidatas resistentes, sabendo à partida que uma e apenas uma ganhará o direito ao lugar mais alto do coração do insigne Jacaré.

Pela sua parte, o Jacaré Voador compromete-se a não se envolver fisicamente com nenhuma das candidatas até ter chegado a uma conclusão definitiva, no sentido de evitar sentimentos de injustiça entre as pretendentes. Pelo seu lado, qualquer candidata é livre de desistir da sua candidatura seja em que momento for. Caso nenhuma das candidatas reuna as caracterísiticas consideradas desejáveis e indispensáveis para aceder ao posto ambicionado, o Jacaré Voador reserva-se o direito de as mandar passear a todas mais a esta porcaria de concurso.

Quaisquer situações inesperadas que surjam no decorrer do concurso e que não estejam contempladas neste regulamento serão resolvidas atempadamente pelo próprio Jacaré, de maneira o mais imparcial possível, no sentido de evitar injustiças e contentar todas as partes envolvidas.

Sem mais, resta apenas desejar boa sorte para todas as concorrentes! Let the games begin!

domingo, outubro 10, 2004

FIM DE CAPÍTULO

Ao final do dia, de regresso a Lisboa, e depois de uma viagem mergulhado numa espiral de tristes pensamentos, chego a casa no mais abatido estado de espírito. Após um banho quente e reconfortante, tomo uma importante decisão: tenho de falar com a Ruiva. Tenho de lhe dizer o que sinto e o que penso – rematar as tais pontas soltas. Não o pretendo fazer movido por uma vã esperança de a reconquistar (só um gajo cego, surdo e estúpido conseguiria ainda acreditar nessa possibilidade), mas sim porque acredito que me sentirei melhor comigo mesmo depois de o fazer.

Respiro fundo antes de marcar o número do telemóvel dela. Ela atende. Parece cansada. Mas eu não planeio demorar-me e vou directo ao assunto: digo-lhe que estou desiludido e triste por ela não ter demonstrado qualquer vontade de fazer uns míseros 30 quilómetros para se encontrar comigo. O tom de voz dela muda radicalmente e denota bem a sua irritação. Diz-me rispidamente que, se não foi ter comigo, não o fez porque simplesmente não lhe apeteceu, mas sim porque estava muito constipada e cheia de dores de cabeça. Depois acrescenta que deixou de sair com os amigos dela na noite anterior para se levantar cedo esta manhã para ir ter comigo (coisa que não conseguiu devido à constipação) e remata ainda dizendo que teve uma semana cheia de trabalho e que o dia de hoje foi o primeiro e único em que ela pôde finalmente descansar um pouco.

Permaneço em silêncio por alguns instantes. Fui apanhado em falso – ela não me dissera nada disto de manhã. Porém, isso não significa que seja mentira. E nem me passa pela cabeça duvidar da sua palavra, portanto, “Ainda bem que eu decidi ligar, porque assim isso fica esclarecido,” remato eu. E depois revelo que a razão porque estou desapontado por não nos termos encontrado se deve à necessidade que eu tinha de estar com ela em pessoa para encerrar o assunto da nossa separação. Porque há coisas que prefiro falar olhando na cara das pessoas...

“O que eu te queria dizer, no fim disto tudo, é que é lixado chegar à conclusão que esta relação só funcionou enquanto eu estive empenhado, porque, a partir do momento em que eu baixei os braços, tu não fizeste o mínimo esforço para segurar as coisas.” Agora ela está realmente zangada! “Nós moramos a 300 quilómetros um do outro!!! Eu não te conheço a ti e tu não me conheces a mim e não há maneira de nos conhecermos um ao outro com toda esta distância entre nós!! Que querias tu que eu fizesse?! Desculpa, mas eu não vou correr até ao fim do mundo por tua causa!”

Pois, creio que isso é óbvio. Por esta altura do campeonato, já eu o tinha adivinhado. Seja como for, não estaremos a exagerar um bocado? “Espera lá!” digo-lhe eu, “Eu nunca te pedi para correres até ao fim do mundo por minha causa! Aliás, eu nunca te pedi nada!” É sempre bom deixar estas coisas bem claras, só para prevenir. “O que estou a dizer é que gostaria de ter sentido alguma vontade da tua parte em ver o que é que esta relação podia dar...”

“Temos 300 quilómetros a separar-nos!” rebate ela, “Como é que nós podemos ter uma vida em comum nestas condições?” “Sei lá!” respondo, “Mas essa pergunta esteve presente na nossa relação desde o início! E nós nunca encontrámos resposta para ela!” E, caramba, todos sabiam as regras do jogo desde o início e não foi isso que impediu ninguém de jogar!... Mas, se calhar, uns sabiam as regras melhor que os outros...

“Afinal, agora percebo porque é que tu, desde o início, puseste em dúvida a longevidade do meu sentimento por ti,” disparo eu. “No fundo, a longevidade do teu sentimento é que era de duvidar, mas estavas a projectar em mim o teu carácter.” Quem não conhece o caso clássico do adúltero incorrigível que vive no medo paranóico de ser, ele próprio, encornado? No fundo, ele apenas projecta nos outros o seu carácter e o seu modo de agir e, por essa razão, reage como se todos à sua volta funcionassem como ele. “Se calhar,” acrescento, “eu é que devia ter posto em causa a longevidade do teu sentimento.” Como é natural, ela não fica nada contente (e quem ficaria, depois de ter sido chamado de volúvel?). Diz que eu não a conheço o suficiente nem tenho o direito de tirar conclusões acerca da sua personalidade ou dos seus sentimentos, que não sei nada do que se passa na sua cabeça nem no seu coração e que não faço a mínima ideia do quanto lhe custou terminar a nossa relação. E acrescenta: “Posso até não saber bem aquilo que quero, mas, se há coisa que sempre soube na minha vida, é aquilo que não quero.”

Ouch! Essa doeu! Mas, e daí, creio que a mereci, pela provocação. Admito que ela tenha razão quando diz que eu não a conheço há tempo suficiente. Contudo, e contrariamente a ela, eu não sou de opinião que esse facto por si só me retire o direito de formar apreciações acerca do seu carácter. Enquanto reinar o livre arbítrio, posso opinar o que muito bem entender! Aquilo que aqui pode ser discutido é, não o meu direito a uma opinião, mas sim a validade dessa opinião. Contudo, nem mesmo o facto de não a conhecer há tempo suficiente significa obrigatoriamente que a minha opinião esteja errada. Mas, seja de que modo for, não me interessa entrar em discussão com ela. Estou magoado, provoquei-a e recebi o troco – e deixemos as coisas por aqui. De qualquer maneira, já tenho aquilo que queria, as respostas que procurava. Não vale a pena provocar o confronto e enervarmo-nos, para acabarmos realmente zangados, destruindo o respeito que temos um pelo outro. Portanto, “não te incomodo mais,” digo-lhe. E despeço-me.

Ao pousar o auscultador do telefone, sinto-me estranhamente leve e aliviado, mas, ao mesmo tempo, cheio de uma raiva latente. Por ter sido eu o único a assumir esta relação desde o início. Sinto que fiz papel de otário. Otário não por ter assumido a relação, mas otário por ter compactuado com o facto dela não querer assumir. Sobre esse ponto, ela nunca me mentiu e devo dar-lhe crédito por isso. Mas devia tê-la mandado passear logo à partida, ah, isso devia – “Então, até para o ano! Cá nos veremos no Andanças outra vez!” Beijinho, beijinho e tchauzinho. Afinal, se era para não assumir, mais valia termos encarado a relação como aquilo que, no fundo, era – uma Curtição de Verão –, em vez de andarmos para aqui enganados durante quase dois meses.

... Mas estou a ser injusto. No fim de contas, esta relação foi um grande equívoco para ambos. Porque eu acredito que, tal como eu, também ela queria mais desta relação – nenhum de nós se meteu nisto numa de curtição (embora o pudéssemos ter feito). Infelizmente, havia muitas coisas contra nós. E estou em crer que, caso não houvesse distância a separar-nos, ter-nos-ia bastado uma ou duas semanas para chegarmos à conclusão que, apesar dos interesses em comum, somos demasiado diferentes para que uma relação amorosa pudesse resultar. Enfim, “o que tem de ser tem muita força,” não é o que se costuma dizer?

Contudo e, pela minha parte, não estou arrependido de ter vivido esta relação. Estou até orgulhoso de mim mesmo e do papel que desempenhei em todo o caso. Por ter revelado uma enorme clareza de espírito a analisar objectivamente a relação e uns tomates do caraças ao terminá-la antes de me enterrar mais nela, apesar de gostar da rapariga. Se sofri? Ainda sofro! Mas poderia ter sido muito pior, caso me tivesse deixado conduzir cegamente pelo Coração e teimasse em persistir no engano. Conclusão: a Razão ao serviço do Sentimento só produz resultados benéficos.

No final, fica-me a recordação de quase dois meses maravilhosos. Fica-me a memória de uma cabeleira fulva e um profundo olhar azul que, por breves instantes, mantive entre as mãos. Ficam-me momentos como aquele em que, sentado na calçada duma esquina da Duque de Ávila com a Rua Marquês Sá da Bandeira, com o telemóvel colado ao ouvido e ela expectante do outro lado, eu desembrulhei o magnífico desenho que ela fizera especialmente para mim na noite anterior. Ou como aquele final de tarde no Porto em que, dentro do carro, nos abraçámos ao som de “Fico Assim Sem Você,” da Adriana Calcanhotto, instantes antes de eu a deixar para regressar a Lisboa. Porque são esses momentos de pura poesia que interessa guardar. E são tudo o que se leva da Vida.

DESILUSÃO

Na quarta-feira passada, quase uma semana depois de ter enviado à Ruiva o longo e-mail explicando os motivos pelos quais acredito estar condenada a nossa relação, ela ainda não respondeu. Desconfio que este silêncio anormal não augure nada de bom... Temo que ela esteja magoada e não me queira sequer falar... Mas também lhe cabe a ela uma palavra sobre o assunto e eu confesso que a parte mais irrecuperavelmente romântica de mim ainda não perdeu totalmente a esperança dela não querer que a nossa relação termine. Seja de que maneira for, eu preciso de uma resposta sua. Nem que seja para encerrar de vez o assunto. E esta minha breve visita ao Porto apresenta-se como a oportunidade ideal para conversar com ela em pessoa. Portanto, decido telefonar-lhe – “se Maomé não vai à montanha...”

No entanto, contrariando as minhas (mais negras) expectativas, a voz que me atende é de uma doçura extrema. Trata-me até por “fofinho” e “amor”! Estou atónito e não o escondo. “É claro que eu quero continuar a ouvir a tua voz,” responde ela. Diz que já escreveu há uns dias a resposta à minha missiva, mas não ma enviou porque queria certificar-se dos seus sentimentos sobre o assunto. “Envio-te a resposta hoje à noite ou amanhã.” Ao desligar, estou mais confuso do que antes... Que significa esta conversa? Afinal, acabámos... ou nem por isso?... Por um instante, o meu lado romântico permite-se sonhar... Até que, na noite do dia seguinte, recebo finalmente a sua resposta. Em resumo, diz que eu tenho razão em todas as conclusões expostas. O seu discurso é pacífico e resignado. Creio que isto esclarece as minhas dúvidas. E bye-bye, romantismo.

Seja como for, combinamos “tomar cafezinho” no fim-de-semana. É bom, porque penso que uma separação pede sempre um confronto face a face – para rematar pontas soltas. Convido-a ainda para assistir à minha exibição de Danças de Salão de Sábado à noite, mas ela está ocupada. “Mas encontramo-nos no Domingo de manhã. Eu ligo-te e vou ter contigo,” diz-me ela.

Passa um pouco das dez horas desta manhã cinzenta e chuvosa de Domingo quando recebo o seu telefonema. No hotel, a comitiva da Associação da Faculdade de Economia de Luanda, que eu acompanho, prepara-se para sair, para visitar o Estádio do Dragão e as Caves do Porto antes do almoço. Quanto à Ruiva, percebe-se pela sua voz que acaba de acordar; imagino-a até deitada na cama enquanto fala comigo. “Está um tempo horrível!” diz ela, “Apetece-me estar contigo, mas não me apetece nada conduzir 30 quilómetros à chuva para o Porto! Não sei o que fazer!” Suspiro fundo. Compreendo tudo imediatamente: se ela quisesse realmente estar comigo, não me vinha com esta conversa. É transparente como a água que cai do céu que ela prefere ficar em casa... Só não quer dizer-mo abertamente e magoar-me. Tarde demais. Porém, não sou eu certamente quem a vai obrigar a vir ter comigo, por isso, facilito-lhe a tarefa: “Então, se tu não sabes o que fazer, sei eu: fica em casa e descansa, que o teu mal é sono. O café fica para outra vez.” Ela hesita um pouco: “E tu não ficas chateado?” Asseguro-a que não. E é verdade. Não fico chateado, fico desiludido. Fico triste. Pouco depois, despedimo-nos, com a promessa de tomarmos o nosso “cafezinho” na sua próxima visita a Lisboa.

Passo o resto do dia na merda. Nem os constantes incitamentos do bom amigo Flogger ou das meninas me devolve a minha boa disposição natural. Como as coisas mudam rapidamente, hã? Pensar que há menos de um mês atrás a sua paixão era tanta que ela passava os dias a pensar em mim, e agora... nem sequer é suficiente para a levar a conduzir 30 quilómetros à chuva para estar comigo. De bestial a besta vai apenas um breve passo...

Que desilusão tremenda! Esta merda dói...

sábado, outubro 09, 2004

O MENINO JÁ DÁ ESPECTÁCULO!

Estou na bela cidade do Porto, a participar numa exibição de Danças de Salão (juntamente com a minha amiga Vi, a Porto e o Flogger) para a reunião anual da Associação dos Antigos Alunos, Professores e Funcionários da Faculdade de Economia de Luanda (nome curtinho, hã?). Apesar de alguns enganos menores (não totalmente inesperados, tendo em conta que houve apenas um único ensaio) a exibição corre bem e é um sucesso. A assistência adora o espectáculo e não nos poupa elogios. Nem a nós, nem à Elsa Shamce que, numa exibição a solo de Danças Orientais (vulgarmente conhecidas como Danças do Ventre), encanta a cotalhada presente, ou ao grupo de Danças Africanas que também actua no espectáculo. Este grupo de Danças Africanas é composto, entre outros, pelo Zé Barbosa, pelo Kwenda, pelo Wati e também pela Elsa. Quem passou pelo Andanças nos últimos anos com certeza se lembra deles, pois todos eles são professores de Dança e costumam ministrar alguns workshops de dança no evento.

Para fechar a noite em beleza, há baile, claro. É o primeiro baile a que vou desde o acidente, mas, apesar de já estar livre (desde ontem!) do cruzado posterior, ainda não me sinto suficientemente restabelecido para dançar até o Sol raiar. No entanto, insensível às minhas mazelas e ao cansaço, a Elsa não descansa enquanto não me arranca o cu da cadeira para dançar com ela uma bela kizomba. Mas podem tirar já esses sorrisos malandros da cara, ó lúbricas criaturas! Porque a Elsa é comprometida! Com o Zé Barbosa que, não só está presente no local, como está com os amigos! E eu cá não quero chatices – quando se está em desvantagem numérica, convém não pisar calos a ninguém...

Durante a dança, surpreendo a Elsa com um passo muito simples, que consiste em imobilizar a senhora, prendendo a sua perna direita entre as do cavalheiro. Ela ri-se muito, gosta. “Nunca te tinham feito isto?” pergunto, algo incrédulo. “Não!” Fico siderado! Então esta gaja é a dama do famoso Zé Barbosa, professor de Danças Cabo Verdianas e grande cromo de kizombas, funanás, coladeras e afins, e não conhece um passo tão básico?! Na realidade, ninguém me ensinou este passo – eu mesmo o inventei, a 11 de Outubro do ano passado, numa intensa noite de dança na discoteca africana En’ Clave, em Lisboa. Contudo, o passo é tão simples que eu sempre julguei ter descoberto a pólvora depois da guerra! A reacção da Elsa, no entanto, leva-me a crer que o passo é, afinal de contas, desconhecido! E, assim sendo, eu sou o seu digno inventor! É da minha autoria!

Que grande cromo de dança que eu me saí! Até já invento passos assim à descarada! Não tarda nada ainda me dá na cabeça criar um estilo de dança pessoal, tal como o Bruce Lee criou o Jeet Kune Do! Até já estou a ver a cena... Vou chamar-lhe Kizom Bori Zontal!... E as aulas serão dadas ao domicílio! Alguma menina interessada em aprender?

terça-feira, outubro 05, 2004

O MENINO JÁ DANÇA!

Após um interregno de um mês, volto a dançar. A minha amiga Vi está a organizar um pequeno espectáculo de dança para o próximo Sábado, na cidade do Porto, e pediu a minha participação no evento, juntamente com a minha amiga Porto e o meu amigo Flogger. Infelizmente, dada a minha condição física actual, sou forçado a declinar o convite (com grande pena minha, diga-se de passagem), mas ofereço os meus préstimos para a preparação do evento.

Assim, aproveitando a tarde de feriado, reunimo-nos na Sala de Condomínio do prédio da Porto e, do nada, pomos de pé uma exibição de Danças de Salão. Ao fim de quatro horas de trabalho esforçado, temos o espectáculo praticamente montado: “Depois, no dia da exibição, basta ensaiarmos um bocadito antes do espectáculo e isto fica um luxo,” diz o Flogger. Todos nós, que já temos algum calejamento a este nível, sabemos que ele está a ser demasiado optimista – daqui até Sábado, é mais que certo esquecermos as coreografias que alinhavámos hoje! Por essa razão, apontámos as sequências de passos das várias danças numa cábula, a que iremos recorrer constantemente no último ensaio. Mas ainda há pontas soltas que deixámos para resolver no dia aprazado, sem falar que o gajo que me vai substituir tem de ser instruído! É muita coisa para resolver encima da hora e muito me admirarei eu se isto não der merda!

Creio que o próprio Flogger está ciente do facto, mas a verdade é que isto não pode ser feito de outro modo – somos todos pessoas ocupadas (excepto eu, que actualmente estou de baixa e tenho passado os meus dias em casa) e torna-se impossível voltarmos a encontrar-nos durante esta semana para ensaiar. Portanto, é andar para a frente, fazer figas e confiar.

Seja como for, o problema é deles e não meu, que não vou participar na exibição. “Ai vais, vais,” diz-me a Vi, “Não há tempo para pôr o Rui ao corrente de tudo isto e, mesmo que houvesse, duvido que ele conseguisse assimilar tudo.” “Tu sabes como ele é distraído,” acrescenta a Porto, “não podemos confiar nele, especialmente tão em cima da hora. Sinto-me muito mais segura se fores tu. Tens de ser tu a dançar.” O Flogger corrobora: “E tu é que és o meu parceiro, pá! Lembras-te de Angola? Do Andanças? Tens de ir ao Porto! Vai ser só curtir!”

E, bem vistas as coisas, para quem já aguentou uma sessão intensiva de quatro horas a dançar, não é perante uma exibição de menos de meia hora que recua! Afinal, eu sinto-me bem – cansado, sim, mas sem dores. A minha clavícula não me incomoda nada e creio que já haja consolidação do osso – sexta-feira até já devo tirar o cruzado posterior. Não me parece, portanto, que me seja prejudicial.

Além disso, quem consegue resistir a um apelo destes bons amigos, que reclamam a minha presença não só como profissional, mas também como pessoa e amigo? Ah, um gajo até fica comovido, que diabo...