FREAK SHOW
A sala de urgências deve ser a que acorda mais cedo em todo o hospital. Calado, e já sem sono, sigo da minha maca a azáfama do pessoal à minha volta. Apercebo-me – com alguma surpresa, devo confessar – que todos os pacientes na sala são do género masculino. O que me leva a concluir que as urgências dos hospitais são separadas por sexo. Interessante. Não fazia ideia nenhuma. Mas, pensando bem, é a primeira vez que passo por uma experiência destas e que paro para reflectir sobre o assunto.
À minha esquerda, está o homem que passou a noite inteira a gemer: é muito alto e negro e está completamente vestido. De sapatos e tudo. Deitado na maca, com os pés de fora. Parece perdido. Periodicamente, os bombeiros entram na sala para trazer um novo paciente. Primeiro, um velhote raquítico que respira por meio de um tubo ligado directamente à garganta. A sua respiração é mais arrepiante que a do Darth Vader. Por uma abertura no tubo, sai uma ranhoca nojenta, que lhe cai para o peito. Ele parece não reparar... ou não se importar. Passado algum tempo, uma enfermeira repara: “Ó homem, está a sujar-se todo!” Ele nem reage, enquanto ela o limpa.
Depois, entra um homem com os seus quarenta e tal anos – vítima de acidente de viação, deu um jeito na coluna aquando do embate. Deitado na maca, traz a cabeça, o pescoço e os ombros imobilizados por um estranho aparelho. A sua cara contorce-se em espasmos de dor: “Não me podem tirar isto? É que me dá mais dores...” Após um certo lapso de tempo, alguém se digna responder-lhe: “Não, deixe-se estar. Tem de ficar imobilizado, senão pode ficar pior.” E ele remete-se à única (e pobre) defesa a que pode recorrer para suportar as dores que sente: as caretas.
A seguir, entra um rapaz – pedra nos rins. Este dá verdadeiros urros de dor, agarrado ao baixo ventre e contorcendo-se encima da maca. Passados largos momentos desta formidável exibição de sofrimento, alguém decide encostar a maca a um dos cantos da sala, correndo a cortina à sua volta.
No meio de todo este espectáculo de aberrações, aquilo que me causa maior impressão é o comportamento do pessoal médico. Perante o mais acutilante sofrimento, permanecem inflexivelmente frios, chegando mesmo por vezes a ser rudes. Contudo, entendo-os. Por um lado, torna-se necessário manter uma certa distância emocional dos pacientes, caso contrário sofre-se terrivelmente por todos. E, por outro lado, acredito que lidar todos os dias com o sofrimento acabe por tornar uma pessoa insensível. Entendo-os, sim. O que não significa que aceite. Ou que goste.
Finalmente, um auxiliar entra na sala para servir o pequeno-almoço. Eu estou faminto e devoro o mísero pão com manteiga e o copo de leite que ele me entrega – que me sabem como o mais delicioso manjar dos Deuses! “Quer mais um pãozinho?” pergunta o solícito auxiliar. Venha ele, caramba, que este corpinho sofreu muito e precisa de se restabelecer! Enquanto como, dou-me conta que ainda tenho os dedos sujos de sangue do dia anterior. Mas quero lá saber! O sangue é meu e o pão é meu – fica tudo em família e não há-de ser nada. Não há-de um gajo que passou pelo que eu passei agora morrer disto!
E, com a barriguinha aconchegada, a vida é mais suave. Mesmo na sala de urgências de um hospital. Mas descubro rapidamente que também não fico aqui por muito mais tempo... “Então, está pronto para ir para o Egas Moniz?” pergunta um jovem bombeiro. Egas Moniz?! Mas então não vou ficar instalado no S. Francisco Xavier?... Ao que tudo indica, a pergunta é de retórica, pois, enquanto eu me interrogo, já me mudaram de maca e me enfiaram numa ambulância, para nova corrida em direcção a novo destino.
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