A PRIMEIRA NOITE
A sala de urgências do Hospital S. Francisco Xavier é um caos. Várias macas, lado a lado, misturam pacientes sofredores dos males mais diversos. Como esta é a casa de partida de todos aqueles que se dirigem ao hospital com problemas de saúde, e que aqui iniciam o seu percurso de cura, a sala está cheia de gemidos e sofrimento até ao tecto. Médicos, enfermeiros e bombeiros entram e saem continuamente do local. E eu sou deixado numa maca a um canto.
Enquanto espero, recebo a visita do meu pai, que me traz artigos de higiene pessoal e alguma comida à socapa. Estou faminto, pois a última refeição que tive foi o almoço do dia anterior, mas ainda não me deixam comer. “Daqui a bocadinho vamos pô-lo a soro, a seguir vai dormir e depois logo come qualquer coisa, está bem?” diz-me uma médica morenita muito gira. Soro?! Mas desde quando é que isso enche a barriga a alguém?! Eu quero é comida a sério! Carnuça, caramba! Daquela que puxa carroça! Bebe lá tu o teu soro!...
Passa da uma da manhã quando finalmente me levam para a sala de ortopedia. Lá dentro, pedem-me para me sentar e pôr as mãos nas ancas, “à toureiro.” Depois, ligam-me ambos os ombros com uma ligadura a cruzar nas costas e, finalmente, apertam aquilo ao máximo – e sinto os ossinhos todos a ir ao sítio. Imediatamente (e pela terceira vez desde o acidente), sinto que vou apagar. E aviso. “Não vai nada. Isto já está feito.” E, com efeito, terminaram. E eu não desmaio.
De volta à sala de urgências, despeço-me do meu pai e, depois de me furarem as costas da mão direita para me porem a soro (como prometido pela médica morenita), recebo a visita de outro médico, que me examina o ombro: “Já está imobilizado, fizeram-lhe um cruzado posterior...” e, virando-se sorridentemente para mim, “Muito bem, esse ombro nunca mais lhe vai dar problemas!” Óptimo! Porreiro! Finalmente, boas – e convictas – notícias! Já estava cansado de desgraças...
E depois de todas as provações pelas quais passei, sinto que finalmente posso descansar. E bem mereço o meu repouso! E assim, vestido apenas com as meias e coberto por um lençol, adormeço rapidamente, apesar da luz, do barulho e da movimentação constantes na sala. A partir de determinada hora, contudo, a intensidade das luzes é reduzida, o barulho e a movimentação cessam e toda a sala mergulha num sono desejado, porém leve e dorido, entrecortado por um gemido ocasional aqui e ali.
O meu sono é intermitente. Não sinto grandes dores, mas incomoda-me a posição – não estou habituado a dormir de costas. Além disso, continuo (ainda e sempre) a expelir sangue pela pila, o que está longe de ser confortável. Felizmente, por volta das quatro e meia da manhã, uma enfermeira, descobrindo a poça de sangue em que durmo, apresta-se a limpar-me. Ainda me dói tudo na bacia, mas ela é meiga comigo. Lava-me com um líquido estranho, que verte profusamente sobre a minha pele – o seu contacto é frio, mas, ao escorrer pelas pernas, aquece rapidamente, chegando quase a queimar. Que sensação tão esquisita...
Já limpo e seco, volto a adormecer. Mas a noite é curta e o dia seguinte começa muito cedo.
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