sexta-feira, setembro 17, 2004

RECORDAÇÕES DO REGRESSADO

Acordo esta manhã depois da melhor noite de sono que tive desde o dia do acidente. Não há nada como a nossa própria caminha! Mas também é de esperar que, depois de 10 dias a dormir sempre na mesma posição, o corpo se vá habituando, que raio! Com efeito, já não tenho tantas dores nas costas durante a noite e noto que a zona do sacro desenvolveu mesmo uma certa insensibilidade ao toque! O corpo humano é uma máquina incrível!

Recebi alta ontem de manhã e, pouco depois do almoço, o meu cunhado e o PP foram buscar-me ao hotel, perdão, ao hospital. Apesar de feliz por regressar a casa, confesso que foi com alguma tristeza que abandonei o hospital... Já estava habituado àquela vidinha simples e despreocupada, à simpatia dos enfermeiros (e, sobretudo, das enfermeiras) e custou-me deixar os meus novos colegas de quarto, o Sr. António e o Sr. Zé Guerreiro, ambos a recuperar de operações cirúrgicas.

Nunca me esquecerei da contenda do clister, entre o nosso Sargento (um enfermeiro gordo que o António e eu assim apelidámos devido à sua voz retumbante) e o velho Zé Guerreiro, na noite anterior à operação deste: o velho Zé, surdo como um calhau, adormecera sem meter o clister. Ora o clister é imprescindível, para evitar inconvenientes durante a operação. O António e eu tentámos acordá-lo, mas o gajo limitou-se a ressonar mais alto (e que talento demonstrava – o Arménio e o velho Matos eram meros principiantes ao pé dele!). Resolvemos então delatá-lo a uma das enfermeiras, mas ela também não foi bem sucedida – ele virou-se simplesmente para o outro lado da cama. Mas eis que entra em cena o nosso Sargento! E, depois de um berreiro de vários minutos, o velho Zé lá entendeu que tinha que ir para a casa-de-banho enfiar aqueles tubinhos pelo cu adentro, para expurgar a tripa. “Estes dois estão bem um para o outro,” diz o António, “um é surdo como uma porta e o outro tem voz de comando – entendem-se bem!...”

Não me esquecerei também das conversas sobre sexo que o António, volta e meia, se lembrava de puxar com o velho Zé Guerreiro, dizendo-lhe que era preciso “manter sempre a força” e ilustrando o sentido da afirmação com o braço erecto e o punho fechado. O velho Zé respondia, com um sorriso desdentado, que não lhe valia de nada “a força,” pois a algália o impedia de executar (que diria o Yoda a isto, I wonder?...). “E depois, o corpo também já não dá para isso, que eu já tenho 64 anos.” O António arrepiava-se: “Ó homem, eu só tenho menos dez anos que você, mas quero fazê-lo até morrer, que isto é o maior prazer que eu tenho na vida!” E, por momentos, eu tentava imaginar aquele homenzarrão de ar bruto e queixada larga, com a sua vetusta pança, a saltar em cima da esposa, alagado em suor e com o olhar estrábico vidrado ao atingir o clímax. E não podia evitar sorrir perante a singular e disforme poesia da cena de amor protagonizada por alguém tão estranho aos cânones de beleza idolatrados pela nossa moderna e esclarecida sociedade ocidental.

O homem, porém, não suportava a solidão. “Uma pessoa, aqui, tem muito tempo para pensar... Pensa-se em demasiadas coisas,” costumava dizer-me. Eu levantava os olhos do livro que estava a ler e via perfeitamente no seu olhar a angústia que aquele homem sofria ao ser deixado demasiado tempo a sós com os seus próprios pensamentos. “Não serás o único,” pensava eu. Mas sentia pena deste excelente homem ter vivido meio século evitando confrontar-se a si mesmo.

Foi, portanto, com alguma tristeza que eu abandonei a cama B do quarto 614 do Hospital Egas Moniz. Mas não me interpretem mal, pois, apesar de ainda não totalmente recuperado das mazelas e com um tubo enfiado na barriga e a carregar sacos de mijo, é excelente estar de regresso a casa, ao seio da família. E este regresso torna-se especialmente doce pelo facto de receber em minha casa, na próxima semana, a minha querida mais-que-tudo, de visita a Lisboa. Ela bem quis vir antes, mas eu dissuadi-a – tinha lá algum jeito ela vir a Lisboa estando eu enfiado no hospital...

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