terça-feira, setembro 07, 2004

TORTURA NA SALA DE RAIO-X

“Vai doer?” pergunto ao médico novo. “Não.” Mas não me sinto convencido – quando a dor é dos outros, nunca custa nada. “Queres o bisturi?” pergunta o médico cota, e passa a faca de trinchar ao outro mesmo em frente aos meus olhos. “Sabes quanto precisas de cortar? É um bocado assim,” e o cota indica a distância com os dedos. Sinto-me como uma vaca no matadouro – mas esta gente não se toca?! É o meu corpo que se preparam para retalhar! E, sim, apesar da anestesia, um gajo sente a lâmina a agadanhar a carne, sim! Se eu não estivesse de meias, os gajos podiam ter visto os meus dedinhos todos arrepiados de dor. Depois de feita a ligação directa, tiram-me mais radiografias. O resultado é o que podem ver a seguir.


A bola brilhante é, claro, a bexiga. Mais abaixo, a pequena minhoca em arco é o interior da pila, iluminado pelo contraste. Como se pode ver, não existe ligação entre a bexiga e a uretra – e, basicamente, é este o grande problema. Só por curiosidade, nota-se à direita da bexiga o encaixe da cabeça do fémur esquerdo no osso ilíaco. Bonito, não é?... Eu sempre adorei ossos.

Após analisarem as radiografias, os médicos passam à acção. Primeiro, pedem-me para urinar. A insistência deles leva-me a perceber que este ponto é de importância vital, portanto, cerro os dentes e, evitando pensar na dor que se vai seguir, esforço-me ao máximo para mijar. Consigo apenas umas pingas. De sangue. Os médicos não parecem satisfeitos. Resolvem então recorrer aos grandes meios: e vai de escarafunchar outra vez a pila com a sonda! Desta vez, o médico novo não tem quaisquer contemplações – ele puxa e enfia e repuxa e empurra e dá-me dois e três e quatro nós na pila, uns em cima dos outros. Nunca a minha pila fora tão maltratada, coitadita! “Relaxe. Respire fundo.” Começo a pensar que o gajo tira gozo disto... “Pôça, doutor, você está a fazer de propósito, diga lá!...” atiro eu. Ouço risos contidos de alguns dos auxiliares.

Subitamente, a minha propensão para as piadinhas acaba. As dores na pila são tantas que começam a afectar morbidamente todo o resto do corpo. Dói-me horrivelmente toda a zona da bacia e não sinto as pernas. Não consigo respirar. Sinto-me mal. Sinto-me mal como nunca na minha vida me senti! É um mal-estar extremo, para o qual não existe redenção. É um mal-estar transbordante de desespero impotente no seu paroxismo, provocado por uma insuportável e infinita dor, a rebentar todos os limites de resistência. É um mal-estar do género estou-a-sofrer-há-horas-e-não-há-fim-para-esta-merda-e-NÃO-POSSO-FAZER-NADA-PARA-ACABAR-COM-ISTO! Tirem-me deste pesadelo! Acabem com o meu sofrimento! Só não grito aos gajos que me cortem de vez a pila bem rente e me esmigalhem a cabeça com uma marreta porque estou demasiado ocupado a ranger os dentes, desesperadamente agarrado à ínfima réstia de calma que o último pedaço de consciência, intocado pela dor, ainda mantém vivo.

“Estou a sentir-me muita mal!...” aviso. “Tenha calma e relaxe. Respire fundo.” “Estou a sentir-me MESMO muita mal!” insisto, “não estou a brincar!!” E logo a seguir: “Pronto! Aí está, eu vou-me embora...” O médico cota pergunta: “Vai-se embora?! Vai-se embora para onde?” “Vou desmaiar...” respondo. “Você está deitado, não pode desmaiar.” “Não interessa. Vou apagar...” “Tenha calma. Respire fundo. Isto está quase.”

Não sei como, mas não chego a perder totalmente os sentidos. E, como prometido, pouco depois o martírio termina. Mas a dor perdura. E mais uma vez me pedem para urinar. Tento fazê-lo, mas estou desfeito. Não tenho forças para mais nada. “Há bocado estava a esforçar-se mais,” dizem-me os médicos. “Eu sei. Calma... Eu consigo... mas preciso de alguns momentos para recuperar.” O médico cota aproxima-se de mim: “Não temos tempo. Como sabe, há outras pessoas que é preciso atender.” “Eu sei, doutor. Eu vou urinar. Dê-me apenas uns minutos...” Após uma pausa, o médico decide conceder-me o meu desejo e dá-me dois minutos de tréguas: “Vá, descanse um pouco.”

Respiro fundo repetidas vezes e descontraio os músculos, ainda tensos pela provação. Depois, volto à liça. Et voilá, os meus esforços são recompensados com uns pequenos jactos de urina mesclada de sangue. Os médicos parecem satisfeitos. O médico cota sorri largamente para mim: “Isto é muito bom sinal! Afinal, parece que você teve muita sorte! Por momentos, vimos isto muito mau, sabe...” No shit?!... Olha, as piadinhas voltaram. Parece que já estou bom e sorrio, aliviado.

Com o meu novo tubo enfiado na barriga, mudam-me para nova maca e ala da sala de radiografias. No corredor, a minha vista apanha um relógio. Passa das dez e meia. Quatro horas depois do acidente! Em breve estacionam a maca junto aos gabinetes de Ortopedia. Na sala de radiografias, os médicos aproveitaram para tirar um raio-x da minha clavícula, que se vê abaixo.


Bonita radiografia, não é? A clavícula está partida, mas para o olho destreinado nem parece. Adoro o pormenor do pendente do fio que uso ao pescoço, que se imiscuiu na foto à descarada. Gosto tanto desta radiografia que estou a pensar em emoldurá-la...

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