A RECUPERAÇÃO
Ao fim da manhã, recebemos no quarto 614 a visita de uma grave comitiva, formada pelo director do hospital, um médico e toda a equipa de enfermeiros. Perfilado ao longo da parede oposta às camas, o grupo permanece muito circunspecto, enquanto o médico informa o director a propósito do caso clínico de cada um dos pacientes. Como esperado, os meus dois companheiros de quarto, o Sr. Arménio e o Sr. Matos, recebem alta e ordem de saída. Quando chega a minha vez, ouço o médico sussurrar: “... Acidente de mota... traumatismo da uretra... tem estado a soro, na cama...” Entretanto, o director examina as radiografias. “Acha que ele já está pronto para se levantar?” pergunta o médico, em jeito de conclusão. O director nem hesita: “Basta olhar para ele! A avaliar pela sua posição tão espontânea e descontraída, está mais que pronto para se levantar!”
Pouco depois, a enfermeira Patrícia arfa e bufa enquanto me enfia umas meias muito apertadas pelas pernas acima. “Se não tivesse a sua clavícula fracturada, era você quem as vestia sozinho,” queixa-se ela. O Arménio ri-se: “As meias estão trocadas! Essas costuras que aí vê deviam ser para dentro, junto aos tomates!” Pouco importa. As meias servem apenas para activar a circulação nas pernas, depois de tanto tempo passado deitado. Já livre do soro, enquanto tomo o meu primeiro duche desde o acidente, a Patrícia interrompe-me constantemente, a perguntar se me sinto bem, em cuidados para eu não desmaiar.
Ontem de manhã, tomei um banho na cama, à gato (e aproveitei para finalmente limpar o sangue dos dedos!): o enfermeiro-chefe e a Patrícia esfregaram-me o corpo com esponjas ensaboadas, limparam-me, secaram-me, vestiram-me e fizeram a cama de lavado e sempre comigo em cima! Espectacular!... Embora não muito eficaz, claro. Há sempre partes do corpo que ficam por lavar, como o cabelo, por exemplo – e agora, no duche, ainda tiro bocados de sangue seco dos tomates.
Estou internado no Hospital de Egas Moniz devido ao traumatismo na uretra e porque o Hospital S. Francisco Xavier não tem serviço de Urologia. Basicamente, não consigo mijar direito. Mas o cateter urinário (o tubo ligado à bexiga pela barriga) despeja a urina directamente num saquinho de mijo que carrego sempre comigo. Tal como carrega toda a gente nesta ala do hospital.
Agora que recuperei a minha mobilidade, sinto-me muito melhor. Os dias anteriores foram mais difíceis (e as noites, então, é melhor nem falar!) – pregado à cama e impossibilitado pela clavícula fracturada de adoptar outra posição que não a deitada de costas, sofri de dores constantes nas costas e nas nalgas. A “posição espontânea e descontraída” mais não é que o modo mais eficiente que encontrei de aliviar as dores – dobrando as pernas e descansando o peso do corpo sobre cada nádega, alternadamente. Regressado à posição erecta, sinto os intestinos voltar ao activo. E, nessa tarde, ao sentar-me na retrete para evacuar, descubro que o meu corpo expele, às pinguinhas, não urina, mas sim o sangue acumulado na bexiga, devido à hemorragia interna. Bom sinal! Mais de meia hora (!) depois, aliviado e muito convicto de uma rápida recuperação, deito-me na cama, mesmo a tempo de ver aparecer as primeiras visitas dessa tarde.
E hoje vem muita gente! A minha mãe traz a Filó, uma amiga da família. Depois, aparece a Caracolitos e a minha irmã (o marido dela fica no jardim, a tomar conta do seu rebento, que não pode entrar; depois revezam-se). Vem também a minha amiga Ana, mestra de Reiki. A Chiquitita, a Salex Go-Go e o John chegam juntos. Este último, ao entrar no quarto para me encontrar em tão agradável companhia, diz-me de imediato que “não tem pena nenhuma de mim, rodeado de tantas meninas.” E eu replico que também compreendo porque é que ele decidiu aparecer... Rimo-nos todos juntos. Eu sinto-me magnificamente bem na companhia dos amigos. E especialmente por sentir que estou cada vez mais próximo da recuperação total!
1 Comentário(s):
Nunca me cansarei de te dizer como te admiro por esta capacidade de superar tão terríveis provações!
(Eu, que estou apenas a ler, e que já conhecia muitas das peripécias, sinto-me quase "a ir-me embora"...)
Ainda bem que estes tempos difíceis já vão longe! :)
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