terça-feira, setembro 19, 2006

O RISO DA ROSA

Decorre o ano de 1327. Numa abadia beneditina situada nos Alpes italianos reúnem-se em confronto os teólogos do Papa João XXII e os representantes máximos da Ordem Franciscana. O assunto em discussão é a pregação dos Franciscanos, que chamam a Igreja à pobreza evangélica e à renúncia ao poder temporal, no que são apoiados pelo Imperador Luís II da Baviera, que defende a separação entre Igreja e Estado e a subordinação daquela a este. Pelo seu lado, o ambicioso pontífice, interessado em manter a posição de poder e riqueza da Igreja, preconiza exactamente o contrário: uma Igreja monárquica, hierárquica e de poder divino, congregando em si a autoridade eclesiástica e civil. É na eminência do confronto teológico entre as duas potências que se desenrola “O Nome da Rosa,” o aclamado romance de Umberto Eco.

A história começa quando um monge franciscano inglês, Guilherme de Baskerville, e o seu jovem aprendiz Adso de Melk, um monge beneditino alemão, chegam à abadia italiana, no intuito de preparar a recepção às delegações eclesiásticas. À chegada, porém, Guilherme é imediatamente informado da recente e obscura morte de um dos monges copistas e encarregado de investigar o sucedido. Esta é a primeira de sete mortes que irão transtornar a abadia nos sete dias seguintes.

Para Guilherme, logo se torna aparente que a comunidade monacal se encontra dividida entre aqueles a favor da livre circulação do conhecimento e aqueles contra. De facto, a abadia assume-se como a orgulhosa detentora de uma das maiores e mais completas bibliotecas da cristandade. Porém, o acesso a ela é interdito e mesmo a consulta à colecção é rigorosamente condicionada. Este ocultismo deve-se ao facto de aí estarem arquivados inúmeros compêndios escritos por autores pagãos, judeus e árabes, bem como diversos registos de heresias – leituras pouco adequadas ao leitor comum, sob pena de o influenciar com ideias subversivas, levando-o, eventualmente, a contestar o dogmatismo religioso. Informação é Poder e, para muitos, a maneira lógica de conservar o poder é reter a informação.

O mais perigoso de entre estes livros é o segundo volume da “Poética” de Aristóteles, onde o Sábio faz uma apologia do Riso e suas virtudes. Apesar de julgado perdido o livro, isso não impede os estudiosos monges de discutir o tema. Guilherme e o velho cego Jorge de Burgos defrontam-se em acaloradas discussões sobre a permissibilidade do riso e, enquanto Guilherme o encara como algo “próprio do homem, sinal da sua racionalidade” e meio de lidar com as vicissitudes da vida, Jorge define-o como “fonte de dúvida” e defende que o riso não deve ser livremente permitido aos “simples” como meio para afrontar a adversidade do dia-a-dia, sob pena de vir a ser usado como arma para desacreditar a própria Igreja. O riso aniquila o medo e “sem medo não pode haver fé.”

É curioso como certas polémicas são intemporais. Numa esfera mais prosaica e muito mais contemporânea, o tema do Riso é um que me opõe ao meu pai há vários anos. Para ele, um homem (a) sério deve manter sempre uma imagem e uma posição sérias se quiser “vencer na vida.” São constantes, ainda hoje, as suas críticas à minha apresentação e modo de vestir, à maneira como vivo a minha vida, indícios claros de que encaro o mundo demasiado levianamente. Tal como Jorge de Burgos, o meu pai representa um modo de pensar preconceituoso que acredita que rir é próprio de indivíduos irreverentes e pouco fiáveis. Indivíduos que insistem – inconsciente ou (pior ainda) conscientemente – em não compreender que a vida é dura e não está para brincadeiras. Indivíduos que insistem em fugir aos problemas e responsabilidades da vida.

Erro crasso. Rir, pelo contrário, é estar dolorosamente ciente dos problemas e responsabilidades da vida. É estar mortalmente certo da caducidade da vida. E saber que, perante a fatalidade, mais vale dar uma gargalhada e desdramatizar. É que, ao menos, não se ganham rugas na testa.