terça-feira, outubro 19, 2004

QUEM SAI AOS SEUS

Hoje o meu irmão completa 24 anos de existência. Está a ficar velho, o gajo, com quase um quarto de século às costas. Parafraseando o meu pai, “já vai sendo tempo dele começar a ganhar juízo e ir-se habituando a usar camisa” (não confundir com camisinha), em vez de andar sempre vestido com as t-shirts (rascas) da Meia Maratona de Lisboa. Em defesa do meu irmão, eu replico que ele pode muito bem vestir fato, camisa e gravata quando tiver um emprego que assim o exija e continuar a usar as t-shirts da Maratona nos seus dias de folga.

Mas para o meu pai, isso não cola. Ele defende que um homem sério e íntegro é sempre o mesmo, dentro e fora do emprego. Esses gajos que mudam de pele consoante o ambiente são, claramente, pessoas falsas – inadaptados do sistema que se recusam a aceitar as normas impostas pela sociedade e que, por necessidades pecuniárias (pois um gajo tem de meter comida na mesa, não é?), recorrem a máscaras para fingirem ser aquilo que se escusam a ser. Se o meu pai mandasse (e ainda bem que não manda!), usaríamos todos fato e gravata. E andaríamos todos de barba feita e cabelo cortado. Porque é isso que faz um homem sério.

Este modo de encarar o mundo irrita-me sobremaneira (especialmente vindo do meu próprio pai), porque acredito que o valor de uma pessoa, mais que pelo aspecto exterior, advém da qualidade dos seus princípios morais e éticos e da sua fidelidade a eles (ou seja, não basta apenas ter princípios, é acima de tudo necessário segui-los). E isso é independente da aparência exterior.

Obviamente, esta disparidade de opiniões é causa de constante atrito entre nós. Felizmente, nestas questões, aprendi a ignorar o meu pai e deixá-lo arengar sozinho, caso contrário, já nos teríamos morto um ao outro há muito tempo. Mas ele não perde uma oportunidade para chatear um gajo e esta noite, durante o jantar de aniversário do meu irmão, com a família reunida, ele volta à carga: “Então, pá, quando é que tu me cortas esse cabelo e fazes essa barba?” Do outro extremo da mesa, volto-me calmamente na sua direcção e, com um sorriso nos lábios, pergunto-lhe: “Ouve lá, eu costumo emitir opiniões sobre o teu cabelo e barba?” “Não,” responde ele. “Então não te admito que faças qualquer tipo de comentário sobre o meu cabelo e barba.” Pimbas! Toma lá! 1-0!

Ele está atónito. “Não me admites?! Quem és tu para admitir ou não? Mas nós agora já estamos ao mesmo nível ou quê?” Eu volto a sorrir: “Então, espera só até chegar a altura de ser eu a tomar conta de ti...” Tungas! Vai buscá-la! 2-0! E ainda tem que gramar com a risota geral na mesa e a minha mãe a dizer que “cada um colhe aquilo que semeia...”

“Estava bem arranjado se fosses tu a tomar conta de mim!” Não o poupo: “Se calhar, eu deveria dizer o mesmo.” Tracatumbas! Sem hipótese! 3-0! Nas calmas e a sorrir, volto a pôr a mesa inteira a rir e ele não tem outro remédio senão calar-se e bufar sozinho. Ainda o ouço resmungar para a minha mãe que, actualmente, aquilo que se colhe é bem diferente daquilo que se semeia. Por outras palavras, creio que o que ele quer dizer é que os filhos de hoje são uns ingratos, que não dão valor nenhum ao que os pais fazem por eles.

O meu pai anda muito equivocado. O seu grande problema é que já se esqueceu dos seus tempos de juventude. Caso contrário, lembrar-se-ia que também ele só fez o que lhe deu na real gana, mesmo contra a vontade do seu velho. Não por uma questão de ingratidão ou capricho. Mas porque acreditava naquilo que estava a fazer.

Ele deveria estar orgulhoso de mim. Porque, aparentemente, “quem sai aos seus, não degenera.”

0 Comentário(s):

Enviar um comentário

<< A Goela