quinta-feira, novembro 18, 2004

FREAK SHOW: O REGRESSO

Alarme! O meu cateter urinário entupiu! Desde que tenho a ligação directa à bexiga, que vaza automaticamente a minha urina para um saco à medida que a bexiga enche, não tenho vontade de mijar (a menos, claro, que o tubo seja pressionado ou dobrado, impedindo o normal fluir da urina). Assim, quando, ao princípio da noite, me apercebo de uma crescente vontade de mijar, apesar do saco de urina permanecer vazio, e os esforços na casa-de-banho resultam infrutíferos (dois canais para mijar e nenhum a funcionar!), chego à conclusão que é boa hora para correr para o hospital.

São cerca das onze horas da noite quando entro de rompante na Sala de Urgências do Hospital S. Francisco Xavier, o Circo de Aberrações onde passei a minha primeira noite após o acidente em Setembro passado. Como de costume, as macas alinhadas ao longo da parede à minha direita estão ocupadas com doentes e acidentados padecentes dos males mais diversos. Os médicos e enfermeiras presentes movem-se com aparente indiferença perante o desfile de sofrimento que lhes passa continuamente pelas mãos e pelos olhos e ninguém acusa a minha presença, a saltitar nervosa e desesperadamente de um pé para o outro à entrada da sala. Interpelada por mim, uma médica sentada a uma secretária – uma tiazorra gorda, cheia de cachuchos nos dedos e inolvidável pela sua total inacção perante o sofrimento (e o trabalho) alheio – aponta-me outro médico – o gajo que efectivamente labuta ali. Veredicto do homem: lavagem à bexiga. “Se isso não resultar,” acrescenta ele para a enfermeira de serviço (uma bela morenita chamada Sandra), “é necessário levá-lo para a Sala de Pequenas Cirurgias, para lhe substituirem o cateter.”

Enquanto a enfermeira trata dos pacientes que me precedem, passo um mau bocado de atormentado saltitar – sinto a bexiga a rebentar, tenho dores horríveis naqueles músculos que um gajo contrai para controlar a ejecção de urina e há muito que apertar a pila e torcer as pernas deixou de produzir qualquer efeito de alívio. “Doutor, quando é que me atendem?” pergunto ao médico, “Olhe que eu rebento!” “Não rebenta nada,” ri-se ele. “Diz isso porque não é você,” resmungo eu, entredentes. É então que, num súbito momento de lucidez no meio da minha agonia, me apercebo que eu só sofro de dores porque estou a fazer força para evitar mijar. Sou mesmo um grande idiota! Eu estou entupido! Eu não consigo mijar! Logo, não preciso de fazer força para não mijar! Posso muito bem relaxar os músculos e deixar-me ir! Mas... e se, de repente, desentupo e acabo por me mijar todo pelas pernas abaixo?... Caramba, mas, ao menos, desentupo de vez! Ficaria bem feliz por acabar encharcado e a patinhar numa poça de mijo se, ao menos, desentupisse de vez!

Resoluto e instantaneamente calmo, relaxo os músculos. Com uma pontada de dor junto à próstata, sinto a urina fluir com uma contracção da bexiga, e depois... nada. Apenas alguma dor junto à glande e, finalmente, a urina reflui, de volta à bexiga. Enfim, alívio. Ainda tenho a bexiga inchada, mas já não sinto dores porque estou completamente relaxado. Respiro fundo e, com a minha paz de espírito finalmente restaurada, posso recostar-me e observar o que se passa à minha volta.

Noto que o cheiro nauseabundo que paira no ar provém dos pés do rapaz da cara salpicada de sangue deitado na maca ao meu lado. Numa das macas da parede oposta, um outro rapaz conversa com o médico – aparentemente, caiu enquanto andava de bicicleta, bateu com a cabeça e perdeu a memória. Ele há cenas lixadas! Entretanto, a relativa calma da sala é dissolvida pela chegada de uma maca que transporta um homem de meia idade em estado de fúria, a gritar e a insultar o pessoal médico e todo o Sistema Nacional de Saúde. São precisas várias pessoas para o agarrar enquanto lhe administram uma injecçãozita para o acalmar. É o momento alto da noite.

Enquanto observo calmamente o que se passa à minha volta, reparo com alguma surpresa que o meu saquinho de mijo está um pouco mais cheio. Que surpresa!, parece que o cateter começou aos poucos a drenar a urina. E, de facto, quando chega a minha vez de ser atendido, a enfermeira morenita que procede à lavagem da bexiga chega à conclusão que o cateter está a funcionar devidamente. Ela usa uma seringa enorme (já minha conhecida), para injectar água, através do cateter, para a bexiga – “Agora, relaxe, que Isto pode provocar-lhe uma sensação incómoda.” Ao entrar no meu corpo, a água refresca-me o baixo ventre como se me estivesse a ser derramada sobre a pele. Feels good! Além disso, a enfermeira é muito meiga e eu sinto-me maravilhosamente nas suas mãos prestáveis e carinhosas. Entretanto, ouço o meu nome ser chamado pelo altifalante: “Dirija-se à Sala de Urgências, por favor.” Mas esta gente está maluca? Eu cá estou!

Finalizada a lavagem, o saco de urina enche rapidamente. Poucos minutos depois, os seus dois litros de capacidade estão quase atingidos. Enquanto espero, ouço o meu nome ser chamado mais duas vezes. Finalmente, faço sinal na direcção da tiazorra gorda e apresento-me. “É você?... Já podia ter dito! Estou farta de o chamar!” Nessa altura, aparece o meu pai, preocupado porque ouviu o meu nome ser chamado na sala de espera e receia que eu ainda não tenha sido atendido.

Mas eu já estou despachado e, depois da tiazorra conferenciar com o médico acerca do meu caso, e ele com a enfermeira, decidem deixar-me voltar à minha vida. Umas últimas recomendações do médico: “Beba muita água, para a sua urina continuar assim clarinha e não infectar. E, caso a urina fique turva, consulte o seu médico de família, para ele lhe receitar antibióticos, está certo?” Okay, okay, I know the drill. Estou a tornar-me um especialista em problemas urinários.

É quase meia-noite quando abandono o Circo de Aberrações, aliviado porque o problema se resolveu facilmente. Só não estou mesmo feliz porque não tive oportunidade de pedir o número à bela enfermeira Sandra. Bom, na verdade, até tive, mas pareceu-me de mau gosto fazê-lo durante a lavagem da bexiga. Chamem-me antiquado, mas não achei a conjuntura nada romântica...

1 Comentário(s):

A sexta-feira, 07 abril, 2006, Anonymous Anónimo comentou:

E pa dominas

 

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