terça-feira, novembro 23, 2004

“ESTAMOS AGORA SÓS”

Estamos na França pré-revolucionária. A Marquesa de Merteuil “ressuscita” o seu amante Visconde de Valmont para uma peculiar soirée em que os pratos fortes são os corpos de uma jovem pura e virgem – Cécile de Volanges – e de uma fidelíssima mulher casada – Madame de Tourvel –, guarnecidos com bastante sedução, falsidade, volúpia, manipulação... e corrupção.

Uma enorme mesa com capacidade para 30 pessoas – para além dos dois actores (e encenadores), André Amálio e Joana Furtado, com lugar em ambas as cabeceiras – convida os espectadores a tomar parte da acção. A mesa está posta e o seu tampo revestido a chapas de metal polido reflecte a fila de máscaras com que os espectadores ocultam as suas faces. Os dois actores, movimentando-se à volta da mesa e mesmo sobre ela, contracenam um com o outro, mudando de pele e assumindo à vez as diferentes personagens que se sucedem em cada cena. Servem vinho, carne, pão. Eu como, eu bebo. À saúde! Bebamos, enquanto somos testemunhas dos jogos de sedução, falsidade e manipulação a que Valmont e Merteuil se entregam – e com que ambos se deleitam na ligação que os une –, corrompendo os corpos – e as almas – da jovem Volanges e da senhora de Tourvel. “A falsidade é quase sempre um meio certo de triunfar,” Marquês de Sade dixit.



Assisto à peça “Estamos Agora Sós,” em cena na Casa d’ Os Dias da Água (no 175 da Rua D. Estefânia, em Lisboa) até amanhã. É um espectáculo baseado em “Quarteto,” de Heiner Müller, peça escrita a partir da tradução de Heinrich Mann da obra “As Ligações Perigosas,” de Choderlos de Laclos, publicada em 1782 – e tantas vezes adaptada, nomeadamente para cinema e televisão. Uma simples pesquisa na Net revelará que já foram feitas nada menos que dez (!) adaptações desta obra, umas mais, outras menos fiéis, e das quais destaco cinco: “Les Liaisons Dangereuses,” de Roger Vadim, em 1959; “Dangerous Liaisons,” de Stephen Frears, em 1988 (com Glenn Close, John Malkovich e Michelle Pfeiffer – provavelmente a mais conhecida e melhor adaptação); “Valmont,” de Milos Forman, em 1989 (com Annette Bening e Colin Firth); “Cruel Intentions,” de Roger Kumble, em 1999 (com a caçadora de vampiros Sarah Michelle Gellar); e “Les Liaisons Dangereuses,” de Josée Dayan, em 2003 (com Catherine Deneuve, Rupert Everett e Nastassja Kinski). É caso para dizer que estamos sempre a comer o mesmo, só o acompanhamento é que muda. Mal sabia o Choderlos (e que raio de nome vem a ser este, caramba?! Os pais deviam detestá-lo! Tudo indica que foi uma criança não desejada)...

Assisto hoje a esta peça por intermédio da minha irmã e do meu cunhado, que estiveram envolvidos no projecto em causa (em trabalho de bastidores). Especialmente ele, que foi o responsável pelo design do material gráfico para a peça (cartaz, folhetos e postais) e, posteriormente, me convidou para trabalhar com ele nesse campo. No final, o meu trabalho acabou por não ser usado (pelo menos, nesta fase), contudo, o meu nome aparece na ficha técnica, o que me faz sentir uma certa ligação a este projecto. De primos afastados, ou assim.

Tive ainda o privilégio de assistir, há duas ou três semanas atrás, ao último ensaio assistido da peça. Na ocasião, uma cromita freak pseudo-intelectual também presente considerou o momento mais alto da peça a cena em que Valmont corrompe a jovem Volanges. Contrariando-a, eu professei, alto e bom som, a minha opinião de que o momento mais elevado era, não esse, mas sim a cena em que Valmont corrompe a fidelíssima senhora de Tourvel. Por razões óbvias: corromper uma fiel (e convicta) mulher casada é exercício muito mais exigente (e gratificante) que corromper uma jovem virgem a rebentar de lascívia, “algo já tão visto e banalizado,” rematei. “E já estás tão habituado a isso, não é?” atirou Joana Furtado, a actriz. Toda a gente riu.

E ela nem sequer me conhecia. Como diabos adivinhou?...

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