quinta-feira, abril 29, 2004

A PAIXÃO DO FUTEBOL

Lembro-me bem do primeiro desafio de futebol que segui do início ao fim na televisão. O Benfica jogava contra o PSV Eindhoven. Já não me lembro do que estava em causa (nem sequer acho que alguma vez soube), mas era um jogo importante, já que, nesse dia, estava toda a gente em polvorosa na minha escola primária, ansiosa por ver o jogo dessa noite.

Rapazelho imberbe na altura, não quis ficar indiferente à euforia geral – iludido e imaturo, procurava desesperadamente a aceitação social como meio para atingir a felicidade e pensava que tudo dependia da minha predisposição em correr lado a lado com a carneirada. Portanto, abracei a causa com sinceridade e juntei-me ao entusiasmo colectivo. Em casa, nessa noite, segui o desafio com genuína devoção.

O Benfica perdeu. E eu sofri horrivelmente durante todo o jogo e, no fim, chorei amargamente a derrota. E foi essa a última vez que me entreguei com paixão ao futebol. Fiquei tão chocado com a minha reacção, que decidi nunca mais me entregar de modo tão doloroso a algo tão inútil. Caramba, se era para chorar, mais valia fazê-lo por algo que realmente valesse a pena!

Sempre fui incapaz de compreender o fanatismo gerado à volta do futebol. Apesar da tenra idade, bastou-me um único jogo para me aperceber das consequências funestas e auto-destrutivas da causa e imediatamente a banir da minha vida. Durante longos anos tentei perceber o que levava uma pessoa a dedicar-se tão persistentemente a uma paixão tão irracional e de benefícios tão falhos de realização e/ou engrandecimento pessoal. É de louvar nos tempos que correm, de Amor Descartável, a pertinácia com que estes apaixonados passam uma vida inteira agarrados ao amor por um único clube, contra toda a Lógica e Razão e não obstante incontáveis aflições, mentiras, desilusões e humilhações. É que nem sequer as vitórias, a meu ver, justificam tamanho amor. Em que é que elas contribuem para a vida do adepto? Em nada! Nada de nada! Nem para melhor, nem para pior. A sua vida fica exactamente na mesma! O mesmo emprego, o mesmo salário, o mesmo cônjuge, os mesmos filhos, a mesma rotina de sempre... Porquê, então, tamanha paixão?...

A resposta, no fundo, é clara e basta olhar com olhos de ver para um desses novos estádios do Euro 2004 para se começar a desvendar. Antigamente, as obras arquitectónicas de maior envergadura eram dedicadas ao ofício religioso, que estava colocado acima de todos os outros poderes, incluindo o administrativo e o militar. Em qualquer aglomerado urbano, a maior e mais magnificente construção arquitectónica era o templo. E hoje em dia? É o estádio! Qual é a característica arquitectónica mais marcante de um estádio de futebol? A sua dimensão, ou melhor, a sua escalagrandiosa, comparativamente aos edifícios circundantes. A subtil diferença é que, enquanto a escala monumental do templo se assume como consequência imediata do carácter divino do exercício do Poder Superior – o mais Alto entre todos! – que o edifício alberga, o estádio procura uma divinização do poder que representa pela monumentalidade da sua escala. Por outras palavras, o templo é grande porque é divino, enquanto o estádio é divino porque é grande.

Seja como for, a diferença é tão subtil que, para o comum mortal, acaba tudo por se resumir ao mesmo. Assim sendo, não é por acaso que qualquer aficcionado do futebol apelida o estádio do seu clube de “catedral.” “A catedral,” para ser mais exacto, numa demonstração inequívoca do hiato que separa a sua religião – a genuína, a verdadeira – das outras – inferiores e meras impostoras.

O fanatismo pelo futebol não é mera questão de paixão. É questão de . Mais que uma paixão, o futebol é uma religião. Por esse motivo, a paixão pelo futebol não obedece nem à Lógica, nem à Razão. Porque, tal como todas as religiões, é sustentada pela . E a fé, ou se tem... ou não.

0 Comentário(s):

Enviar um comentário

<< A Goela