sexta-feira, julho 02, 2004

TODAS AS CRIANÇAS VÃO PARA O CÉU

“A minha filha está muito chateada consigo!” diz-me a mãe. “Comigo?...” “Diz que lhe apertou o pescoço e ela não gosta que lhe façam isso.” Sacana da miudeca, hã?! Só tem nove anos, mas já é uma boa sonsa! Ignora as minhas ordens, fazendo-me de parvo (e, para cúmulo, mesmo nas minhas barbas!), ri-se na minha cara quando a repreendo (acabando finalmente por me dar razão, quando se apercebe que eu não estou a brincar), e, não contente com tudo isso, ainda faz queixinhas à mamã! Filha da mãe! É preciso ter lata!

Sei quão delicada é a minha posição – não há adversário mais temível que o progenitor cego de raiva, em defesa da cria atacada por um estranho. Mas não me deixo intimidar; estou seguro da minha posição e creio até que a miúda teve sorte por eu me ter contentado em agarrá-la pelo cachaço e rosnar-lhe entredentes, em vez de lhe assentar dois tabefes bem aviados. E nem sequer me dou ao trabalho de tentar justificar-me perante a mãe. Ao invés, confronto a miúda com os factos do sucedido. Em frente à mãe, claro. A menina tenta rebater, mas a minha contra-argumentação dá-lhe cabo do caso, acabando por expor a parte da história que ela se esqueceu de contar à mãe. Esta, vendo o sorriso comprometido da filha, recua logo, aconselhando-lhe resignação pelo castigo sofrido. Deviam pensar que estavam a lidar com um amador.

Este episódio tem lugar no A.T.L. da Junta de uma das Freguesias de Lisboa, onde estou a dar assistência (a especial pedido da minha querida mana), em regime de voluntariado, durante as manhãs desta semana. Desde os meus dezoito anos (portanto, há dez anos!) que eu trabalho como monitor em Colónias e Campos de Férias durante o Verão. Adoro crianças e sempre me dei muito bem com elas. E elas comigo. Não é por acaso, aliás, que, todos os dias, estes miúdos me perguntem porque não fico o dia todo com eles. “Tenho que ir trabalhar à tarde...” “Oh...” respondem eles, desiludidos.

Contudo, por vezes um gajo precisa de fazer voz grossa e apertar com elas, senão as crianças conseguem levar um gajo à loucura. E ainda lhe comem as papas na cabeça! Como é possível que tanto egoísmo, tanta intolerância e insensibilidade caibam em corpos tão pequeninos? Mais: como é possível que coexistam no mesmo corpo com a maior doçura, a maior candura e sensibilidade? Adoro crianças, sim, mas revolta-me, por exemplo, ver o desprezo e repugnância que todo um grupo é capaz de dedicar a uma pobre rapariga só porque a menina em causa é gordita e, consequentemente, não tão lesta como os demais. Mas não há nada que mais me irrite do que quando os miúdos se fazem de parvos e me tentam fazer passar por parvo, como a tal menina tentou fazer.

Farto-me de rir daqueles que dizem que “o reino dos Céus pertence às crianças.” Sei bem o quão cruéis podem ser as crianças umas com as outras, devido à minha experiência como monitor. Mas especialmente devido à minha vivência como criança que fui. Lembro-me bem daquilo que fiz quando era puto.

E eu até era sossegadinho...

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