terça-feira, outubro 17, 2006

N.T.M. “CREOULA”

Após dois dias de viagem por mar, a bordo do “Creoula,” chegada a Cádiz, às 10:00h de segunda-feira, 16 de Outubro. O “Creoula” é um veleiro, mais precisamente um lugre de quatro mastros. Com 36,0 m de altura por 67,4 m de comprimento de fora a fora e envergando pano latino em todos os mastros, o navio foi construído no início de 1937 (o que significa que tem 69 anos de idade!) e lançado à água a 10 de Maio desse mesmo ano, realizando ao todo 37 campanhas de pesca de bacalhau nos mares gelados da Terra Nova e da Gronelândia até 1973.

Eram tempos lixados, esses. Cada campanha durava cerca de seis meses, em que os pescadores permaneciam isolados em mares inóspitos e gelados, longe de casa e da família. O dia de trabalho do pescador de bacalhau durava vinte horas (!), parte passado na pesca à linha, no dóri (pequena embarcação individual de fundo chato) – com o risco constante de se perder no mar, devido aos nevoeiros repentinos –, e parte passado de volta ao navio-mãe, na árdua tarefa de escalar e salgar o bacalhau. E, para cúmulo, durante todos esses meses, só se comia... bacalhau.

Após sair de actividade, o navio foi recuperado e, em 1987, entregue ao Ministério da Defesa Nacional e classificado como Navio de Treino de Mar (N.T.M.), “para apoio na formação de pescadores e possibilitar a vivência de jovens com o mar.” Durante o embarque, os instruendos (51 no máximo, fora o Director de Treino), orientados pela guarnição do navio (intencionalmente reduzida a menos de 40 elementos), têm a oportunidade de “participar activamente no dia-a-dia da vida a bordo de um grande veleiro e na sua condução em alto mar,” desempenhando “todas as tarefas da vida de bordo, desde as de auxiliar directo do Oficial de Quarto a navegar até às inevitáveis limpezas diárias e aos trabalhos de copa e cozinha,” em quartos de trabalho de 4 horas, que alternam com períodos de descanso de 12 horas (bem diferente de antigamente, hã?).

Quando surgiu a oportunidade de embarcar no “Creoula,” numa viagem de seis dias a Cádiz, não hesitei. Era uma experiência que eu não podia deixar passar, a ocasião ideal para pôr à prova a costela de pirata que eu sempre acreditei ter. Já me via a trepar aos mastros feito um lobo-do-mar sazonado e a escovar o convés com uma escova-de-dentes carcomida. Ah, a vida no mar! (Para meu desalento, logo no briefing inicial, ainda antes de zarpar, foi comunicado que a subida aos mastros era proibida. Desmancha-prazeres!) Não desmerecendo dos antigos marinheiros, a minha única apreensão era o enjoo. Nunca fui de enjoar em quaisquer transportes, quer terrestres, aéreos ou marítimos (o barco para o Barreiro conta?), mas uma excepção, ocorrida há mais de quatro anos numa visita à Berlenga, só não deu em gregório porque a viagem de barco foi curta, apesar de galopante. Tive sorte. Ainda assim, decidi prescindir de comprimidos e pulseiras (!) contra o enjoo no “Creoula.” Que eu saiba, não consta que os piratas tomassem essas mariquices...

Cedo descobri que toda a gente enjoa no mar. Até os marinheiros (e os piratas). Assim, também eu tive o meu baptismo gregoriano. Um jacto laranja do que tinha sido o almoço de massinha de peixe, despejado para o Atlântico, logo no segundo dia de viagem. Depois aprendi. Evitar alimentos de demorada digestão, evitar encher demasiado a pança – ou andar com ela vazia (sempre é melhor vomitar comida, do que regurgitar bílis). E recolher ao beliche sempre que me sentia mais agoniado (deitado, o balanço do mar não enjoa, embala. É um mimo!). Entretanto, o meu corpo deve ter-se habituado, porque, mesmo em terra firme, sinto-me como se estivesse em pleno alto mar. Tenho o sentido de equilíbrio todo desregulado. É divertido à brava!

Tirando esse episódio, a viagem fez-se bem. Ontem aproveitei para passear pela cidade de Cádiz, mas confesso que o burgo não me cativa por aí além. Talvez seja do tempo cinzento e chuvoso, mas acho estes espanhóis do sul muito sorumbáticos. E feios. Nada a ver com las españolitas muy guapas que pululavam por Santiago de Compostela, aquando da minha última visita, há dois anos. Ou com les mignonnes filles françaises que encontrei às pazadas em Montpellier, no ano passado (a propósito, Flogger, temos que lá voltar. “L’ Enchanthé” – e as gémeas – esperam por nós!). Seja como for, a cidade não deixa de ser bonita quando observada do alto, como se pode comprovar pela foto abaixo, tirada da recém-restaurada Torre de Poniente, na Catedral de Cádiz. Procurando bem, vêem-se no canto superior direito os quatro esbeltos mastros do “Creoula,” atracado no porto.


Preparo-me agora para deixar Cádiz. Zarpamos amanhã de manhã e tudo indica que vamos apanhar mau tempo no regresso a Lisboa. A médica de bordo já alertou toda a gente para começar a tomar os comprimidos para o enjoo esta mesma noite. Mas eu decidi ignorar o aviso. Há quem me ache corajoso e quem me ache inconsciente. A todos digo: “Se enjoar, enjoei. Se vomitar, vomitei. Mas quero viver esta experiência com tudo a que tenho direito. Hardcore.” Ademais, acredito que o meu metabolismo é capaz de se adaptar à vida no mar sem a ajuda de drogas e estou disposto a prová-lo. Daqui a três dias saberei a resposta. Desejem-me boa viagem.

0 Comentário(s):

Enviar um comentário

<< A Goela