sábado, outubro 21, 2006

O PIRATA JACARÉ

Estou de regresso a Lisboa, após um total de 142 horas de navegação, traduzidas em 510 milhas percorridas em 4 dias de viagem a bordo do “Creoula” (mais dois dias de estada em Cádiz).

Apesar da viagem curta, foi uma semana muito intensa, em que tive a oportunidade de viver como um verdadeiro marinheiro. Dormitei no convés, feito um lagartão ao Sol; auxiliei o Oficial de Quarto na ponte, aborrecendo-o com perguntas idiotas sobre a navegação do navio; dormi num catre estreito, partilhando a camarata com outros 20 marmanjos; puxei o lustro aos “amarelos” (elementos de latão de que são feitas diversas peças do navio, desde o resguardo da bússola magnética aos corrimões, alguns puxadores e muitas malaguetas); lavei panelões na cozinha, e partilhei o meu semi-digerido almoço de massinha de peixe com os golfinhos do Atlântico; aprendi a laçar uma quantidade imensa de nós (e já os esqueci todos); tomei banho numa cabine de ducha dançante; dei uma mãozinha no leme; fiquei uma hora de vigia, à clemência da chuva e do vento da madrugada, sentado na retranca da polaca (é uma vela, não uma gaja), sobre o casinhoto da máquina do ferro; voltei a polir “amarelos;” lancei uma nova moda, ao calçar um All Star® de cada cor (pois o pé direito ficara ensopado durante a escovagem do convés, nas limpezas da manhã); e ainda tive tempo para enviar uma carta ao meu amigo secreto. E tudo isto só na viagem de ida.

E na volta? Limpei as zonas comuns da coberta, dançando com a esfregona na camarata masculina; lustrei mais “amarelos” (por esta altura, até já dava workshops de limpeza de “amarelos”); estive de servido no rancheiro, a lavar loiça e a servir refeições (e por pouco não regurgitei os filetes do jantar no mesmo prato em que comi); voltei a escrever ao meu amigo secreto (e a outros não tão secretos); participei na faina geral de mastros, a puxar cabos para içar as velas do navio (para ganhar estabilidade no temporal); uivei ao vento, empoleirado no gurupés com outros dois, a gozar o carrossel improvisado pela ondulação e a apanhar com as ondas no focinho, até um dos oficiais nos repreender e acabar com a brincadeira parva; disse adeus aos golfinhos; voltei ao rancheiro, e aproveitei para surripiar dois talheres com a inscrição “Marinha de Guerra” (souvenirs de viagem); ajudei na concepção e construção de um colete salva-vidas artesanal; atulhei o meu amigo secreto de cartas; voltei à faina geral de mastros, na incipiente madrugada da última noite, puxando cabos e ferrando o pano do contra-traquete, açoitado pela chuva e pelo vento no alto do casinhoto, com risco de cair e partir os costados nos dóris, estacionados logo abaixo; e enchi a pança com pão com chouriço na última ceia, já completamente adaptado ao balanço do mar.

O mau tempo que apanhámos na viagem de regresso empurrou-nos de tal modo para o destino que acabámos por passar essa última noite já fundeados na foz do Tejo, frente à Praça do Comércio. Foi magnífico acordar na última manhã e ser presenteado com a majestosa imagem de Lisboa vista do Tejo, não obstante o tempo tristonho e chuvoso. Eram 10:00h de sexta-feira, 20 de Outubro, quando o “Creoula” atracou finalmente na Base Naval do Alfeite, em Almada.

Para o ano há mais. Pelo menos, os meus companheiros de aventura mostraram muito entusiasmo em organizar outra viagem para o próximo ano. Até Barcelona. É tentador... Vamos a ver se pega. Até lá, bom, vou fazendo por me acostumar de novo à vida em terra. É que o meu metabolismo habituou-se mesmo à ondulação do mar! Esta manhã, ao acordar, julguei estar de volta ao “Creoula,” pois a cama não parava de balançar! E quando me levantei, para proceder às abluções matinais, não consegui evitar caminhar aos zigue-zagues pelo corredor afora. Toda a casa ondeava!

Foi divertido à brava! Vou encarar isto como a minha iniludível consagração como marinheiro. E assim, confirmada que está a minha costela de pirata, aqui apresento a minha bandeira pessoal.



Chamo-lhe Jolly Jack. Yar, matey!

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